quarta-feira, 1 de julho de 2009

Fui-me embora para Pasárgada

Caros amigos e amigas, perdoem meu incrível lapso de memória. Mudei-me para pseudocontos.wordpress.com pois muitos que tentavam navegar por estas terras turvas, não estavam conseguindo acessar o blog inteiramente, pois aparecia um aviso de um suposto e incômodo vírus.

Alguns contos que estão aqui foram remanejados para lá. Uma seleção rigorosa fora feita e peguei o que achei que havia de melhor escrito aqui(o que resultou em uma limitada escolha); atualmente também ando envolvido com o planejamento com mais alguns amigos, de um livro de autores independentes(odiamos o termo "amadores").

Meu sumiço(parcial) deve-se à estes últimos fatos relatados. Espero que gostem do novo endereço.

Este blog ficará no ar até o humor do autor permitir.

sábado, 9 de maio de 2009

Tesoura de Pontas Arredondadas

atualizado em 11/05/2009!

Uma conta de quinhentos reais matou seu amor. Ele não dramatizava, e sentia que o drama lhe escapou após o velório, quando na terceira reflexão sobre um dos paralelepípedos que lhe pareceu em desacordo com os restantes, lembrou que não precisaria mais frequentar as festas de gente medíocre que tanto odiava; pareceu um consolo, mas no fundo no fundo se falasse em outras épocas seria sim, um egoísmo, e dos grandes.

Mas havia o pragmatismo dominante cuja nova religião acalentava parte da alma, aquietava o espírito, dominava o corpo e vez ou outra derrubava algum valor antigo.

Mas aquele sorriso verde não; aquele sorriso cujo peso, o do metrô, inesperado e absoluto, durante a experiência cruzada num cheque e num esbarrão desenhado por uma situação noturna, clamava futuro e era por vezes opressivo, trazendo desintegração e isto preocupava completamente a comunidade.

E aquelas pessoas, menores do que um arroz de segunda-feira, ou de um saleiro, ou de uma copo descartável que ninguém sabe realmente se é ou não reciclável, e ninguém sabe também se as pessoas o são, agrupavam-se, atrapalhando o destino de vida que ele idealizava. E sem consultar o todo poderoso, vez ou outra este lhe enfiava um ônibus saindo do ponto, uma carta de despedida, uma oportunidade de estágio jogada às traças, um amor impossível, uma idiota que queria conversar, quando ele desejava apenas silêncio.

E o divino era qualquer um: um esbarrão, uma música de Charles Mingus, uma kombi com um filho da puta egoísta na direção!, um idiota bem intencionado que estragava tudo, tanto à si mesmo ou sua boa intenção, e a linda ruiva racional que na hora dos testes secretos e pessoais que ele encomendava no intervalo do gole da cerveja, falhava, falhava comiseravelmente diante deste mecanismo divino, e aí deixava de ser ruiva. A noite apagava e faltava-lhe vontade e clemência para dar mais uma chance àquela possibilidade vermelha, roja e feminina, que não conseguia passar pelos testes afetivos mais básicos e ainda assim, num balé semi-ridículo, insistia em não tornar-se plena, e desgastava-se à ponto de não ser suficiente em si mesma, e ele, ele odiava a auto-piedade, e foi por isso que quando a verdadeira morreu, não resolveu despejar meia lágrima, por que tinha coisas mais importantes à se fazer, como reler Rauyela e arrumar aquela parte do armário ignorada durante anos.

As falsas ruivas falhavam. E quando uma destas, reprovava-se, reprovava-se por atitudes que desconhecia ter, e mesmo que resolvesse por algum motivo explícito obter, como num passe de mágica, de teatro ou de pura estupidez(e se alguém lhe informasse do ponto de inflexão exato) em que pudesse se adaptar para vestir o arquétipo da melhor maneira possível, ficaria reprovada, pois seria o mesmo que uma cola, e os testes afetivos que ele silenciosamente construía, eram definitivamente sem consulta. E ele não culpava-se, pois cada um possuía testes secretos que não revelavam para ninguém e que difícilmente, mesmo que revelados corresponderiam ao verdadeiro teste, guardado em segredo, quando revelado, modifica-se internamente como num mito antigo que escutara[1].

Ele mastigou as nuvens, recortadas após um erro de calendário, com uma tesoura de pontas arredondadas; que não agrediam a infância e na mesinha de centro um campeão cheirando uma carreira de pó não tão vencedora, mas que surpreendia sempre que parte daquele teatro embarcava no políticamente correto da divisão do cartão American Express; vencido.

E só no seu mundo, aqueles viciados eram poéticos à ponto de ilustrarem pouco de seu cotidiano; na maioria das vezes, e isto fugia à poesia, qualquer vício previsível era tão poético quanto rotinas classe-média.

E aí havia um ritual específico que pontuava o ambiente.

O lábio mordido, o sussurro no túnel; e aquele mictório, onde ele teve de desmanchar aquela decepção orgânica pensando na ruiva, aquele, no canto do piso, com aquela urina, velha urina e assim, sentia-se poético, sentia-se amável e com e como, uma gorfada sincera as pessoas ririam, ririam com o som do vidro, da caneta, da nota, da fungada.

Sucediam os testes secretos administrados pelos campeões. O intuito era credibilidade; mas naquele momento não mais importava, pois a confiança só fazia sentido na largada, que durava cinco ou seis minutos, na esquina daquela vontade de se matar, que perdia para uma prestação parcelada de morte ritmada que alguns chamavam de festa. Mas e durante a prova havia sempre a possibilidade de alguém se fuder numa Tamburello, e morrer como um fracassado, com pó nos culhões e uma atendente frígida injetando insulina ou fazendo transfusão de sangue em plena Avenida Brasil, que de nome, já basta o fracasso.

A felicidade teve nome; e isto aconteceu setenta e seis horas depois da festa, pois só se é feliz quando se conhece a desgraça. A felicidade foi enterrada em frente à passarela dezesseis num dia ensolarado, que não acordou meia dúzia de viciados, demasiadamente preguiçosos e avessos ao sol, mas conseguiu cumprir seu papel de trocar receitas de bolo de mães cristãs que copiosamente amavam seus papéis sociais no intervalo do coveiro e das lágrimas, sussurrando as mesmas frases que eram distribuídas e vendidas sistemáticamente pelo vendedor de jargões-para-serem-ditos-em-enterros, que diante aquele quebra-cabeça mal-ajambrado, colecionou uma pequena fortuna e foi o verdadeiro show-man por detrás daquele enterro.

E quando aquele filho da puta, que entrou armado, usando o mesmo pó, a mesma arma da novela das oito, o mesmo argumento, e a mesma dívida(ele não tinha American Express - portanto não podia parcelar a vida nem a agonia), ela morreu, ela morreu por que a filha da puta teve azar, e só tinha quinhentos reais, e ele com pó nos culhões, precisava de dois mil...

Bateram na Tamburello, e se fuderam, se estatelaram e a festa acabou:

- A festa acabou porra. Acabou, dizia mais um viciado cujo nome pouco importa, mas que estava mais preocupado era com o pó manchado de sangue, do que com ela, fudida numa noite em que não deveria, mas procurou sair de casa.

Se Deus não conseguira lhe emprestar cem pratas, deus não servia pra porra nenhuma: falou no enterro e metade do velório não notou, pois aquele novo ansiolítico distribuído pelo ministério da saúde era o melhor que já vira; mas a outra metade notou, e achou poético, e ele foi recebido com aplausos calorosos, pois há muito tempo ninguém recebia uma demonstração tão vívida de emoção e sinceridade, pois aquela sociedade já fora completamente consumida pelos ritos sociais e degenerava-se à perfeição.


[1] Amaldiçoado por um deus antigo, um pastor de ovelhas queria casar, uma deusa lhe deu um artefato poderoso, uma urna mágica, que continha um objeto dentro desta.

Esta urna possuía um tesouro e uma função mágica; aquela que visse seu conteúdo ficaria terrívelmente apaixonada pelo pastor. Arguto, este tentou usar livremente sua caixa mágica, mas viu-se terrívelmente frustrado quando descobriu que o objeto tornava-se invisível quando abria a urna para suas pretendidas. Descobriu a seguir que ao contar o que a urna guardava, o objeto aparecia; mas havia um truque que demonizava aquele artefato; toda vez que seu dono revelava o conteúdo, este modificava-se, e ele sempre passava por bufão e mentiroso. Sempre que revelava o conteúdo da caixa, o conteúdo se alterava e então ele retornava à estaca zero. A maldição jamais se encerrou, até que o pastor ficou pacientemente aguardando alguma mulher que conseguisse visualizar o conteúdo da caixa sem que este a revelasse, para conseguir se apaixonar, falhou e morreu só.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

A hora que nos vence

A hora nos vence. Os ponteiros nos dobram.

A falta de luz então nos derrota, assim, como num comentário que nem tentou ser poético, mas foi. Foi sem saber, e só soube quando da rotina alguém escutou e guardou aquilo ali: a poesia, os ponteiros dobrados, a hora vencida, que aquilo tudo, aquele todo incoerente, enfim fez sentido.

Foi assim, naquele terceiro trago, depois da pigarreada sutil, mas estúpida, que ele dobrou a poesia, guardou no bolso, tomou a rotina, e foi ali, foi além, ali onde apenas a cerveja fazia sentido.

Ele, de cabelos e de vontade mais curtos, completamente desgrenhado de valores, permitiu na pior quinta-feira do ano, sentir saudade e tensão.

Comia ansiedade, mastigava a angústia no canto da boca daquele siso que doía; seus pés não paravam de tocar uma bateria imaginária, e as mãos irriquietas tamborilavam a mesa, cheia de papel-carbono e situações limítrofes.

Dependente.

E aí, bem ali, na frente dos ponteiros dobrados algo se revelou, e ele acordou, assim sem poesia.

- Próximo! Pró-xi-mo!

Três horas da tarde, logo logo, este banco maldito fecha.

E os ponteiros, vão me dobrar.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Treinamento de Incêndio

Treinamento de incêndio!

Foi aí, que eles falaram a mesma coisa: fuja para o norte, fuja para o norte. Abre a primeira porta, vira a esquerda, dança, corre!

Naquele pedaço de vida, que ele descendo as escadas; assim, no canto daquele suicídio sem coragem, que ele e ela se fizeram.

De incêndio porra!

Mas era apenas um treinamento, de suicídio, de um incêndio... no canto da primeira porta. Vira a esquerda, corre, corre.

sábado, 4 de abril de 2009

Universitário de Merda

Aquele universitário de merda, era o mesmo que entendia quase tudo, a não ser o que não era ele próprio.

Aquele sarcasmo maldito escondido na terceira cárie, mas universitários não tem cárie. E era ele.

Aquela merda de tabaco ruim. Aquela dura, que eles tomaram. Mas eles eram brancos, brancos e estudavam na PUC.

O policial negro, o capitão do mato, que trata o povo, e o cartão de crédito de medicina com respeito, o juiz mulato, que pra ser exceção, resolve virar uma regra. Reacionária e régua, intransigente, que mede todos pela cor.

Os negros favelados que se fuderam e você só viu naquela página de jornal que o retardado da 406 limpou, sob você e seus risos, comerciais de tv, ali, assim, com famas nos olhos.

E ele, ele assim, no meio de tudo isto, que nem identificação de classe tem, mas já se posicionou, ele aquele merda ousado. Aquele hippie de botique, aquele filho da puta sujo. Sujo.

O oficial de justiça, que sob sete anos de concurso, consegue falar que só cumpre ordens, mas não diz que goza modesto quando tira o extrato do banco, ali, onde se esvai a justiça e o prazer, e avante, adiante de uma ereção do seu caráter curto, desdobra-se uma ética de onze, ou doze centímetros.

Aquele merda, empilhado na calçada, era teu pai, sem o pistolão da Evaristo Freitas, sem o coronel da Gracindo Farias, sem ajuda daquele teu avô canastrão e corno!

Aquela caixa de papelão, era tua tv, com big brother, com quatro arrabaldes de madeira, e ar-condicionado, com aquele corpo sujo estendido no chão, aquele que você estudou na aula de sociologia urbana.

Aquele universitário de merda, aquele merda no espelho, era você. Era você.

Aquele merdão, que sorriu sem graça e não gostou do conto, era você, era você, um homem relativo, empilhado, caráter curto, cego, com um cartão de crédito cretino sem cárie, e que passava pelos capitães do mato assim, completamente regorgitados.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Fronteiras

Nestas fronteiras, nossa fome não cabe
Linhas que inventaram, para manter
Nossos corações e corpos calados

O capitalismo é contra o amor
Ele odeia a felicidade

Encurtadas as distâncias, derrubadas as barreiras
Destruídos os feudos da urbe,
Urbe cinza de prazer castrado

Eu te saciaria
Tu viraria água
Eu sede

O capitalismo pois bem
Este monstro insensível

É contra o amor

quinta-feira, 26 de março de 2009

Do primeiro milagre - Parte I, II e III

Agora que leio, e sinto, entre uma janela fechada ou uma terceira encomenda e carta depositada no destinatário errado, que possuo apesar da incapacidade intríseca de percorrer estações sem me molhar e quando chove a capacidade de andar e amar despretensiosamente pelos paralelepípedos amarelos; uma capacidade incrível de renovar todas e minhas esperanças.

Sim, eu possuo; e como se fosse o azul do céu que não anda tão perdido mas entretanto observa-se com mais exatidão quando dorme, seja no ponto de ônibus, no metrô, ou na água salgada que envolve o sono mais profundo, eu prossigo... E caminho, eu caminho e crio esperanças, umas por detrás das outras, como formigas, singelas, e agradáveis, que andam às centenas pelo meu quarto, despretensiosamente ordinárias e felizes.

Não tão especial, eu abandono, abandono-me, abandono-a nos sonhos para resgatá-la na realidade, que se não é tão especial, aparenta pelos acasos, dizer-me algo que as vicissitudes do cotidiano, as vaidades e belezas pessoais procuram ocultar.

Flanqueio-a e ela nem vê, mas agora percebo-a, com mais exatidão à princípio, como aguardasse um afago que nunca virá, sem esmero, sem destino, sem naturalidade, cheio de esperanças e sonhos irredutíveis, inúteis com seus desejos inesperados.

Lembro-me do seu cheiro, da poesia que eu nunca recitei, do encontro que não houve, mas haverá, das flores, da conversa, do futuro, que haverá! Lembro-me, lembro-me de tudo o que eu disse, assim, para mim mesmo, como se falasse para ela, mas ela... Ela não existe. Ela é um pedaço meu, um pedaço meu que clama e conquista o mundo ao meu redor, um pedaço que entrego, e desperdiço, vez ou outra, em novas, velhas e recorrentes esperanças.

Lembro-me então, dos contos e amores inacabados, como se postam e se conservam ao mar.

E lembro das memórias dos sonhos. Da praia que tudo carrega. Do amor que tudo leva. Da paixão que tudo conquista. Do abraço que tudo desmorona.

E aí esqueci de mim mesmo, como uma janela fechada, e de juventude, que por amar despretensiosamente andou às centenas no quarto, e com cheiro de poesia, de naturalidade, fez-se no beijo e na surpresa daquele amor platônico agora concreto, irresistível, porém ainda abstrato. Pois sozinho, lhe cabem esperanças, e da mesma forma de que tudo leva, aqueles olhos ainda haverão de encontrar os seus, que conservados ao mar fizeram-se tão inacabados, sem ela.

Fim do Primeiro Tomo.

[...]

(Sob uma noite fria o poeta escreve)

E hoje acordei assim, normal, com vontade de passar o dia costurando sonhos. Peguei tudo o que tinha: vontade, vergonha, cigarros, meia caixa de fósforo, uma mochila e quatro camisas, sendo uma verde; saí sem princípios, e isto foi até o meio-dia.

Na mesinha de centro o relógio apitava, e não era meu. Eu não me importava.

A geladeira jazia ligada, e o fundo da casa acrescia-se de uma água-furtada, que ligada pelos tijolos e pelas insônias dos anos anteriores faziam dos cômodos passárgadas e conectavam-se com um sonho antigo, pontuado sem motivo como uma pedra de gelo caída e morta em minutos no centro da sala sem nenhum aplauso ou alarde dos convidados, e uma música que muitos queriam escutar, mas ninguém, ninguém absolutamente podia realmente ouvir.

E ela, ela que nem me lembrou, mas que eu fingia esquecer depois do almoço, na minha imaginação dormia, dormia sob as águas-furtadas que incriminavam metade de mim, cujo esboço feito de esmero e efêmero era pura vodka-estraga-poemas.

E quanto mais eu me deteriorava, podia ver o mundo deteriorando-se. E o mundo deteriorava não só enquanto eu me deteriorava, mas era algo além, pois minha deterioração estava aquém, e sim eu sabia, sabia quando nos piores dias percebia, que mesmo que eu não me deteriorasse haveria algo ou alguém para se acabar no finito do mundo. Pois o mundo se acaba sem mim. E isto era uma tragédia à minha verve narcísica... Eu adorava. Adorava saber que eu acabaria, mas tudo então, permaneceria com força e vigor, e que minha potência era apenas cigarros, poemas e justos consolados.

Para manter a instituição imaginária da sociedade, eu deveria convivier bem comigo mesmo, e não deixar minhas criações subjugarem o criador. Como deus por exemplo. Criação minha, nunca conseguiu me subjugar, mas meu destino, este sim, que não estava escrito nas velhas fórmulas, fazia planos secretos naquele pedaço de mente que eu esquecia ou ignorava, e tanto fazia sob os antigos ou novos esquemas, o que era relevante era que isto implicava em manter a esperança.

Algo real e concreto começou a germinar, rompendo as cascas e forçando o solo e as desilusões à acomodarem-se sob o novo quadro: a luz, o orvalho perante às cascas, folhas, no céu da verdade empírica e esmagadora dos fatos; fatos que se faziam só, eu nascia ali, na esquina da morte, que não fazia peso, pois era parte do todo e das cinzas do novo, reciclando no final dos finais. Era a morte cotidiana.

Renascia sob o tom da dúvida; o sal e o tempero eram só meus, naquele momento íntimo do paladar, algo meu.

O mundo terminava em mim, era uma fronteira possível mas que odiava o outro em si mesmo, na água-furtada, no poema do outro que feito para mim, me escolhia sem que para isto eu tivesse esmero. Todavia guardava alguma empatia, mesmo forçosa.

E demasiadamente empática, empático, nos assemelhávamos, mesmo assim, largados na avenida ordinária do mundo. Eu via o mundo morrer, mas eu sabia que ele iria sobreviver sem mim, e que ele morria na minha presença, sob a minha vida.

[...]

(A chuva e a desgraça pareciam não incomodar o falso artista)

Aberta a janela, a das opções, o mundo falava com o quarto que a princípio era todo o mundo; tímido, mas eterno, como um universo já feito. E aí a cama, os copos vazios, os livros calados que falavam sem parar, e aqueles pequenos papéis e as pequenas coisas que eu não conseguia ordenar, já que organizar um universo clamava as esperanças, e agora eu só tinha e mantinha sonhos, sonhos que eu não lembrava.

A nota amassada, a mandala que da esperança à superstição fora justa, justa desde o início e nunca mentiu apesar de ser objeto das perguntas que não queria responder...

E eu, eu, que não me encontrava mais sujeito nas quintas-feiras, mas resolvia, implacável comigo mesmo, juntar-me com os cacos ou as sobras daquela obra, daquele sorriso que não era e nunca foi meu, daquele beijo que eu admirei sem que fosse seu alvo, daquele amor, que eu só dispunha com a obra pronta, em película de 35 mm ou que só admirava por um outro necessáriamente menos empático, menos dramático, menos infeliz. Daquele afago que eu assistia e completamente aturdido pelo amor que existia fora de minha presença, cirscunscrevia minha solidão num plano lógico de sentido.

Eu quando tocado, assim, por aquela força que também me queria, mesmo que de tão longe merecesse mais força, nós nos implacavelmente nos amávamos num futuro possível e indisposto, mal resolvido, e por isto agradável, quase terminal.

Novamente. Novamente, eu não ligava para a morte do amor, nem de mim mesmo, pois eu já estava com os pés na vida, e assim, como um outro que não deixa de cantar; sorria, sofria.

Irredutível, eu sabia, e lia, entre uma janela fechada, entre mais um copo de café, entre mais um poema longo e demasiado, que era assim, era assim na esquina da imperfeição da vida, que mais um empático, entregava-se, entregava-se e colocava à disposição o coração de avenidas de amor que ele percorreu.

E aí eu voltava, voltava à tudo... Esquentando chaleiras, preparando o café, observando sem desejar títulos eu retornava ao estado original, pois toda dor, segundo meu autor preferido...

"Toda dor retorna ao seu estado original".

E retornava, com amplitude de uma fé. Retornava, amando um futuro indisposto...

Criado. Mas entre a poesia, aquele seu estado bruto, que sempre retornava...

Ele chegava, por entre as trilhas, por entre as sendas, por entre os muros, pelo criado-mudo. Ele sempre chegava.

[...]

(Em uma semana que não resolveu sair para nada, apenas tomar café, comer, escrever, pintar)

terça-feira, 24 de março de 2009

Apartado

Por que a cama vazia
Ainda possui um corpo
E um coração de lados opostos?

Por que o café da manhã
Traz açúcar e cordialidade
E a noite um metrô cheio?

Perguntaram-me como estou?
Ou ratificam à si mesmos,
Seus humores, e suas respostas?

sábado, 21 de março de 2009

22:18

Por que dez e dezessete e um relógio cego
Não calam o vento da rua?

E os bebês que não se olham
Vivem juntos ou brincam
Num aquário?

E o poema que não rima
Namora atenienses ou xinga espartanos?

Invadiram-te, e também a inglaterra

Este canteiro que é da rua
Mata o circo ou o carnaval?

As coisas que não se encontram
Vivem juntas ou desenham só
Os corações?

Os jutos que falam com velas
E as gavetas que nunca oram?
São atéias ou são alheias?

sexta-feira, 20 de março de 2009

Bibliotecas Afetivas

Você não entendeu, mas se entendesse teria me desperdiçado no terceiro quarto de paralelepípedo.

Quando a sua emoção transbordou, junto com o café, com a casa, que se desmanchava quando os tijolos derretiam toda vez que você chorava, precisávamos comprar casas, emoções e tijolos novos. E algo irrompia. Sem dó.

Aquele abismo que apelidamos com o mesmo nome de um cachorro que você teve nos idos de 1977, não se acostumava comigo, e toda vez que eu levava o lixo para fora, ou dormia dentro do ônibus de ressaca, ele resolvia me engolir, e além da ressaca, eu perdia duas ou três semanas, Justificarfugindo das trevas, pois o estômago dele era grande. E além de você ter de me encontrar, eu perdia meu emprego, e a situação piorava, por que não haviam vagas de caçadores de abismos abertas por aí.

O seu cabelo era ruivo, mas você sempre insistia nesse seu solipsismo irritante, que eu, eu possuía um daltonismo particular que não chamariam mais de daltonismo em idos de 2072, pois as coisas estavam invertidas, que eu não enxergava a cor negra, nem a amarela, que essas cores eram vistas como ruivo. Talvez fosse verdade. Talvez o mundo estivesse errado.

E e que a vida para mim, era algo meio tenso, devido às cores erradas que a minha retina escolhia.

Eu enxergava em branco, ruivo e negro.

Quando eu me despedi, eu na verdade desejava sumir, como fazia, toda vez que fingia ser uma paisagem, e isto era particularmente fácil, ser paisagem.

E de quando eu conseguia me esgueirar, me esquivar para dentro daquela biblioteca que parecia meu próprio mundo, um mundo decerto mais organizado, no qual me escondia, olhando para a janela, chorando sem ninguém ver, por entre aqueles tijolos, aquele silêncio, onde um ou outro caminhava, onde as estantes e entranhas de ferro, o cheiro de mofo, os ventiladores que não falavam, acabavam me seduzindo, e eu fingia buscar um livro, mas eu buscava era o nada.

A bibliografia era emocional; partida ao meio, escandalosa, afetiva, antiga.

Eu buscava a mim mesmo, eu me buscava ali, andando de um lado para outro sem propósito, sem o propósito de gente que busca as bibliotecas; enfileirado entre aqueles livros, eu sonhava em me encontrar na terceira estante, com algum código de barra de bibliotecas, preso na capa, na alma, do livro, no livro, onde eu pudesse definitivamente ler aquele meu manual de instruções, construído pelo deus que eu negava, e pura deliciosa abstração.

E eu me acharia. Eu me acharia, mas na verdade eu me achava quando conseguia não ser observado, quando a solidão dominava o ambiente e eu não ligava nem para os livros, estantes ou homens-estantes que me olhavam, era quando assim, daquela janela suja, que algo não importava, e eu começava verdadeiramente a me tornar uma flecha sem alvo.

Infinitos. E aí, parte dos livros falavam, por milissegundos, e se calavam, e a biblioteca citava aforismas toda vez que eu ia embora, mas ninguém via além de você.

Eu dormia.

Eu era assim ruiva.

Completamente sozinho.

Como um livro mofado, que mesmo na estante, morto entre às traças, foi pego em cinco de março de mil novecentos e setenta e três.

Mesmo sem a bibliotecária, cujo arrependimento falava mais do que todos aqueles nove mil títulos, na noite em que ela escolheu o rosto mais fácil, mesmo assim, o livro partiu, partiu para não voltar.

Partiu no quarto segundo do paralelepípedo passado.

Aquele que já se foi.

Sob uma quinta

O cachorro, com o horóscopo
Do dia dezessete, se identifica?

O solitário que bebe músicas
Nas máquinas de cerveja, esvai-se
Com a espuma ou com os harmônicos?

A dor e o sonho recorrentes
Acabam na segunda ou insistem
Os feriados religiosos?

sábado, 14 de março de 2009

Religião: esperança.

Sob o metrô, andava de um lado ao outro, escondendo o coração do outro lado do peito.

Sob às roupas fingia normalidade, normalidade entre os tons.

Compreendia apenas a linguagem que o traduzia.

Reunido na oposição afeto e cinismo, sentia um medo terrível e profundo, que costumava digerir o equilíbrio de cinco ou seis respirações yogas; e que ainda assim eram totalmente submetíveis à tristeza, um medo da vida.

Quando a paisagem irrompia, podia olhar para os vales, os morros, os prédios e os transeuntes sem olhos, por que eles não pagavam esses olhares gratuitos; mas quando os túneis ou os muros cinzas do subterrâneo do metrô percorriam-no, assim sem pagar passagem, ele era obrigado a olhar cada história de vida, esparramada no banco, com seus trejeitos que não apitavam, mas sob as roupas, fingiam também suas normalidades, apesar de saber que tudo aquilo ali era falso.

Abandonado, esta áspera existência parecia-lhe um caminhar longo e interminável.

Sem propósito.

Desmedida. Descomedida. Abrupta e insensata. Sem sentido.

Ele podia estar errado, mas o dicionário só dava nome à coisas, pois era um analfabeto de emoções.

As coisas, estas, só davam nome às pessoas. E as pessoas, as pessoas eram escravas das coisas.

E ele, ele, este simples; não buscava nada, ele era apanhado, e fingia normalidade, assim; entre os tons... entre as opiniões que o guardavam.

Sua nova religião era a esperança; fingia que não, mas era, e era como todo fiel, um crente que não desistia; e esperava, esperava a ruiva até o fim, até amanhecer assim, com o copo vazio, com a ressaca, com a culpa ou a desesperança enchendo seus pulmões.

Não perdia o amor, a ternura, a esperança; de um alguém que não esquece qual lado se guarda o coração, de qual lado se finge, de qual lado se caminha dentro da normalidade, de alguém que tinha sensibilidade para compreender o que era dito.

Alguém que preferia o silêncio ao amor. O tempo à surpresa. O passado ao ingrato presente.

A peça que pequeno-burguesa não se encaixava e que às vezes um ou outro malicioso, no descanso da rotina e que despertado por medo, justiça ou inveja, a nomeava, cambaleante como uma terça-feira normal, respondia...

Respondia a pergunta feita, e era assim, do jeito calado, vilão ou profeta.

O malicioso de sorriso curto cansava, e ele dormia, ele dormia, ele acordava sem medo, sem palavras. Nem ódio, nem paixão. Nem sorriso, nem cor.

Nem lágrimas tinha.

Era um "ir haver".

Caminhava. Sem propósito, pois o propósito, mesmo oculto, era caminhar, mesmo vilão, mesmo profeta, cuja ternura amanhecida nesse seu rosto de cabelos lisos fazia-o assim, inquilino de um coração, que ficava do outro, do outro lado do peito.

Este, o que não dormia.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Poéticas Perguntas - Vol I

Inspirado pelo "Livro das perguntas" de Pablo Neruda, inauguro o primeiro da série.

O relógio que matou o ponteiro
É sociopata ou ladrão?

O olhar que nega o dinheiro
É o mesmo que assa o pão?

E a justiça, o lucro, o bueiro
Tem cheiro de esterco
Ou de açafrão?

domingo, 1 de março de 2009

Animais eróticos

Tomou banho, e era como se fosse um um orgasmo gratuito, naquele dia quente, quente e perfeito, que escorria tudo o que era ruim pelo ralo, tão curto, apertado.

A ruiva estava num dia ruim, e era esse, era esse o melhor dia para pegá-la com força; pegá-la não, queria devorá-la num quadro de Munch.

Estavam famintos. Enquanto ele tomava banho, ela despia parte da roupa, cantarolando uma música francesa, os pingos no chão do boxe, e ele, com tesão guardado que não fechava no registro do chuveiro.

Ela usava uma roupa que lhe era familiar e que ele já conhecia os atalhos, mas nem por isso removia o inédito daqueles corpos ébrios de desejo.

O lábio dela mirava o lábio dele - com força. Os olhos dela reviravam-se antecipadamente. Ele sentia tesão a cada suspiro, a cada gesto espontâneo, quase apático, mas que ainda guardava naquele ventre, a vontade de unir aqueles desejos tão criminosos num balé de corpos despudorados.

A cerveja esquentava, eles não ligavam.

O quarto simples e seus vassalos, cômoda, cama, telefone diziam: fode ela com força.

Quando ela se espreguiçava com aquele tesão guardado por semanas transbordando com a banheira e a espuma, com o cabelo assim largado, o corpo dele dizia, dizia que iriam se consumir até no inferno.

Aquelas unhas pintadas de vermelho instituíam uma lei: não para, não para nunca, vai até o final seu filho da puta!

A respiração de ambos, aquele ritmo, aqueles urros primevos, aquela dor que ele sentia quando ela arranhava todas as suas costas, e que parecia dizer: estive aqui, eu estive aqui, eu marquei minha história no teu corpo já desgraçado, já usado...

E ela, que não se explicava, mas deixava bailar, ora parecia controlada, mas tudo era um ardil, e eles sabiam bailar neste teatro honesto, onde não haviam censores, onde somente haviam o haver naquele balé dos diabos.

O início era sempre angelical e profundo, onde armavam-se, onde faziam aquele palco de lençóis, respirar por entre os sussurros, as texturas das mãos, dos corpos se roçando, provocando aquele início que fingia inocência, mas que guardava uma maldade erótica que explodia quando o animal guardado dentro de ambos resolvia fugir, quando aqueles dois sexos se encontravam.

E quando eles arfavam e inspiravam o perfume de si próprios, e quando degustavam-se, canibalizando o amor, o afeto, a paixão, o tesão, o sexo que esgotava não no cansaço, mas naquela raiva contida, que tomava conta daquela cama profana, algo acontecia, ou era um urro, um tapa mais firme e descomprometido, uma olhadela por cima daquela timidez deste quarto provinciano.

E aí largavam-se, largavam-se e por alguns momentos, ainda umbrais e dominados por sentimentos antigos e primitivos, como aquele grito dela, cujo abajour destroçado no canto da cama, onde ele jogava-a e carregava ela assim, como um origami desajeitado, resolvia falar, explodir.

Vai, mais perto, mais fundo, mais forte, devagar, com calma, continua, eu te amo, eu te amo, filho da puta, filha da puta.

E um grito, um urro sincero, seguido de um tapa que estalou o recinto, falaram por eles e calava , calava todo o conto.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Carnaval

Enrico e sua vida afetiva
Tornaram-se à força
Um maio de 68

Matemática do Diabo

E o antigo, chamado de velho nos corredores íntimos do não-políticamente correto, observava, e sabia pelo movimento de quadril, ou pela blusa rosa desajeitada, cujo cabelo quase molhado, que cobria parte da alça do soutien, que a ruiva compraria pão, iogurte e mel.

Era uma matemática dos diabos.

E tal fato se repetia, reproduzindo-se, seguindo uma vontade oculta não explicada que não fazia sensualidade naquele corpo antigo, mas que despertava no cotidiano do velho uma sensação contínua de deja vu, esboçada no fim de seus dias, onde a ruiva, tornada ponteiro, ou apenas areia escorrida na ampulheta do cotidiano, colocava-se exposta, sempre num bom dia ou numa conversa trivial na porta daquele mercado curto, curto de interações sociais.

E o pão, o iogurte, e às vezes o cogumelo shitaque, preso num copo de vidro, rendiam mais do que um bom dia, no qual o velho, recostado no único banco sincero daquele hectar, em frente ao mercadinho sem nome, procurava prolongar mais seus oitenta e dois anos bem vividos com a conversa casual e pontualíssima que lhe era costumaz.

E a ruiva, vítima corriqueira e agradável de um sorriso cuja experiência e serenidade já faziam parte das necessidades culinárias do cotidiano e da vida, fazia questão de o agraciar, menos do que a sua história realmente merecia.

E o velho, ou o antigo - digam os justos, agradecia gentilmente aquela que parecia sua filha emigrada para o Canadá, ou na verdade, que justamente se assemelhava, de alguma maneira particular que só o antigo se recordava, de sua querida e eterna amante: esta mulher, Lola, valente e ruiva, que fazia-o viver perante os apocalipses do cotidiano. Que o fazia chorar nas noites de Natal. Aquela memória viva, lacinante, que fez aquele velho sem vida naquele mercado sujo e desigual, lutar nas barricadas da Espanha, que o fez, chorar, quando teve de enterrar Lola Iturbe assassinada pelos franquistas em 1936, onde a terra camponesa e coletivizada que guardava aquele corpo matava também parte de si próprio.

E o taxista, aquele que não tinha nem uma experiência rica e devastadora de uma grande guerra que produzia monstros de carne e osso, ou ou a esperança de uma grande revolução, assistia as guerras da televisão como videogames, onde não existiam Lolas, nem pães, nem iogurtes, e que costumava apenas pensar banalidades que não emigravam nem para a Espanha, nem para o mercado do cotidiano, que se espatifavam e morriam estilhaçadas quando um passageiro resolvia viajar de táxi, encontrava-se largado. Com as mãos e pupilas cansadas, onde a ruiva, a ruiva tornada assim cotidiano, parecia apenas inalcançável e distante como um fundo que não se mexia e ele não adivinhava nem com o movimento da ruiva ou do velho, que seus dias estavam contados.

Os ponteiros passavam, matando o velho nos intervalos da ausência sincera da ruiva, e quando ela fazia-o viver, agradava alguma idéia de encadeamento do destino, perdida no sótão sórdido e oculto de alguém que enxergava a eternidade em outro ponto da cidade que não aquele.

E aí neste ponto exato, mas estúpido, onde as coisas não se encontravam se não por obra de um deus dado pelo nome de acaso, ou no caso atual, desta fabricação quase real das possibilidades, Vasilli encontrava toda a história como num aneurisma de um mundo que se fazia apenas causa-efeito; este encontro secreto, mas agora revelado ao leitor, se deu na noite do dia dezesseis de um mês quente de verão, talvez um fevereiro, mas decerto seria um quase-março, onde ao acender um cigarro, Vasilli, enxergou sem ver, aquele soutien rosa, sob os ombros corajosos daquela ruiva.

No encontro do mundo, pequeno pedaço de algo forçosamente unido, nutriam, o mesmo sentimento de perda, e desconheciam, que cada um, taxista, Vasilli, o antigo e a ruiva, constituíam-se num encontro revelado que desabrochava frente à uma única cor e onde todos fingiam, mas mesmo sem par, a necessidade fazia e impelia-os a se encontrar.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Depois e durante o carnaval: lembranças

Tudo me lembra ela. E ela nem sabe.

Se soubesse, eu me lembraria pouco, pois estaria tranquilo pela sua lembrança.

Conquanto o amor só traz inquietação, traz em si, cervejas, traz poetas sozinhos, traz assim, um pedaço de mundo completamente perdido, perdido dentro daquilo que não prestava e que sem pistas, deixava sem dúvidas aquilo que era parido, parido e mal esculpido assim; na dúvida.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Na boate

Dançavam e quando faziam, o mundo decidia ruir.

A pista de dança, fútil e silenciosa, assim tão temporária, envergonhava-se no puro silêncio de dois corpos. Dois corpos justos.

Os ruídos e a festa de ambos apagavam pessoas, tornadas meras paisagens desnecessárias, juntavam-se às luzes, luzes que como se fossem candelabros tímidos, celebravam caladas, assim, como num culto de amor próprio em que ambos decidiam-se sem um perdão ir até o final, forjavam um quase sempre curto, e completamente viral naquele balé de expectativas; de esperanças.

Ela, a ruiva, passava as mãos naquele cabelo liso, até oleoso, despretensioso e abusado, mas ele a olhava com um soslaio fingido, sincero, que respirava tão sensualmente; ela acariciava-o sem pressa sob o ritmo frenético do sábado, ele mordia os lóbulos de sua orelha, ela jogava a cabeça e o orgulho para trás, ele beijava todo o seu pescoço, ela pressionava seu ventre ao dele... E tudo era tão bom.

Tão bom.

Ela mordiscava-o com fome, e o obrigava a agir, a sair daquela toca, daquele culto desinteressado, à segurar seu cabelo curto esquecendo aquele niilismo emocional que era na verdade medo, e assim ela gritava no oculto: me pega porra, me suga com tesão, me fode agora com força!

Me puxa sem futuro, sem medo, e deixa essa dor se misturar ao prazer do teu corpo, ao teu cheiro, à tua fronte, ao teu gosto.

Deixa eu gritar um amor de instantes!

Na cama, o lençol apartado jazia ao lado da garrafa vazia, o corpo nu, encontrado entre as paisagens desnecessárias cultuava dois corpos calados.

No final tudo resolvia se encontrar.

A dor, o gozo, as palavras. Que vão remendando tudo, assim, tão abusadas.

O mundo, dizia depois do grito de minerva, era um grande amontoado de coisas, que não existia se pensássemos como um algo coerente e unido. Mas o mundo, e ressaltava após o terceiro gole de cerveja e com os dedos apontados para as nuvens que cobriam o planeta, o mundo, foi dividido, num espólio desigual entre pessoas. Cada um guardava um pedaço de mundo dentro de si; uns recebiam mais pedaços e que guardados sob segredos nem sempre solitários, acabavam por desfrutar mais do que deveriam desse acordo. Uns gastavam mais, outros menos.

Acabava por desfrutar de um instante que era o eterno, aquele instante abusado, explícito, necessário.

Enfatizavam o óbvio.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Enrico e Joana



Era na décima faixa de seu cd preferido que ficava e permanecia bêbado pois era a música que o tocava, e não o inverso.

Era no meio da semana que a casa e ele desorganizavam-se, juntos, com as meias, os medos, os sussuros sem dono e os vazios que insistiam em gritar dentro de si mesmo, reclamando presença.

Era no quarto, e no quarto trecho de conversa que desanimava ou lembrava de uma piada engraçadíssima que não compartilhava com ninguém - ia embora meio bêbado, meio feliz, meio deprimido, com cinco aspirinas no bolso.

Desperdiçava-se dentro do ônibus, com os trocados e as tristezas sendo entregues assim, sem culpa, e esparramadas pelo cotidiano, com sua pequena história de vida vendida à preço barato; o trocador, o motorista, e a mulher semi-nua do banco da terceira fila à esquerda: não se importavam.

A paisagem ia mudando, mas havia uma solução completamente radical: um afago, pois um afago verdadeiro, um de quinze minutos, resolveria tudo.

Resolveria completamente; mas afagos verdadeiros não se compram à metro... Afagos não se vendem à quilo; afagos não são como pombos que sempre retornam ao estado original(...) , afagos sinceros são bilhetes de loteria, moedas marcadas, poesias em livros rasgados...

Afagos verdadeiros, sinceros e honestos são como algo que resolvesse jamais pensar, algo que resolvesse apenas sentir, como árvores, e que definitivamente, por ser um afago sincero, não resolvesse nascer em árvores.

E ele sabia, sabia disto com uma dedicação semi-profissional, sabia, quando fazia a barba no espelho quebrado e cortava-se acidentalmente, e de tão só em um apartamento vazio, completamente vazio, costumava pensar o que ela, desconhecida e oculta, pensaria quando ele se cortasse.... Talvez diria algo ou reagiria, ou resolveria acariciar seus olhos sem alguma fé.

(...)

No canto da casa algo se comovia.

Era na terceira ilusão que resolvia caminhar, sem rumo. Como deus, que resolvesse observar sementes de girassol largadas num terreno pantanoso ou barrento, ela acreditava. E acreditava, a ponto de colocar falsas expectativas, que eram tão verdadeiras a ponto de ela se permitir acreditar naqueles filhos da puta em série.

Filhos da puta. E ela, que mesmo assim, aparentemente desgraçada, dava as boas vindas e convidava-os à perdição... mas quem perdia, e no fim do jogo, era sempre ela, sempre.

Possuía um mundo-homem que não concordava. Possuía um mundo macho, violento, viril e que nos finais de semana fingia empatia e estabilidade, com rosas e cartas de amor encomendadas.

Possuía-se sem se conhecer.

A maquiagem borrada, batom sujo no vidro, ela e a cinta-liga negra dormindo naquele calor infernal, com a cama assim, tão completa e vazia, cuja fé fingia um orgasmo sincero mas não romântico naquele amor de quinze minutos...

E ele, tão homem, que não se comovia e vendido à quilo pelo preço do mercado, ia embora no dia posterior, com o mundo todo sobre seus ombros, com a cinta-liga negra, com o amor de encomenda, com a terceira ilusão e com o que sobrou da expectativa dos afagos sinceros, e desaparecia, com ela na borda, emoldurando o prazer daquele filho da puta egocêntrico e narcísico.

Goza primeiro seu merda!

Ela, que cozinhava e cozinhava-se, e carregava no peito Eros e Thanatos, a vida, o prazer e a morte, na caixinha de música movida à corda, com a bailarina no topo com um imã mal fixado, jurava, jurava que aquela gravidez não era amor, não, não era, e sabia disso naquela noite mal dormida.

Quando parou no espelho para ajeitar os cílios, teve vontade de chorar, botou a culpa nos hormônios e parou, parou assim; completamente honesta.

(...)

Não se conheciam, essas duas almas gêmeas indômitas e indiferentes. Faltava destino, faltava um esbarrão no metrô.

Indiferentes, ele e ela precisavam de sorte para fazerem jus aos seus nomes e expectativas; precisavam de um pouco de destino e um ponto de apoio confortável para que os afagos sinceros pudessem alavancar o mundo.

Bastavam-se, mas precisavam se encontrar. Precisavam se encontrar, como sementes de girassol, sementes jogadas no mundo.


quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Hagiografia de Pecadores - Volume II

Celeste tinha um segredo que ninguém, mas ninguém sabia; até agora.

Entrava à esmo nos enormes prédios do centro da cidade, apesar de ter descoberto recentemente que o centro da cidade não é bem uma zona central, mas fica cada vez mais a leste, toda vez que se pretende chegar nele.

Sob a mágica dos prédios, mirava um andar em particular, consultórios, financeiras, sindicatos ou firmas de construção.

Bela Vista!, que a janela não via; passeava, sorria, fazia personagens, e como se não houvesse vida entre as portas, aquelas que nunca abriu, resolvia voltar. E começava tudo de novo, no próximo dia, até que descobrissem seu segredo, e ela tivesse que recomeçar um novo jogo que alguém ainda não tinha inventado.

Jean enxergava corações em coisas que não se assemelhavam aos corações. Papéis de bala largados que pareciam ter formatos de coração, pinturas que ele mesmo fez, pedras insensíveis e apaixonantes; lá dentro, da sala de aula, ele não se apaixonava por ninguém, apesar de fazer repetidamente numerosos origamis de corações nos dias mais quentes que voavam quando alguém se dispunha a perceber.

Matheus e seu dom enxergavam a beleza das medianas. Olhava aquela de trança, olhos negros, largada.

A que não tinha tanta graça, nem tranças, guardada no canto do ônibus, desajeitada. Aquela outra, mais adiante, a de cabelos loiros, que nem olhos bonitos, nem ônibus possuía para se esconder, a que movia as mãos sem alvo e motivo; que disfarçava o jeito, de jeito a não revelar a ninguém o alguém especial que tinha sido naquele curto momento no universo de Jean, e depois deixado passar, se escondia novamente, assim, com as mãos completamente desajeitadas e nuas...

Numa placa impositiva e infeliz: - Atenção, máquinas trabalhando, quando Santiago mudou-a para o escritório em que trabalhava, ninguém mais riu, além dele próprio.

Valadares era uma pessoa comum, era o que todos diziam e murmuravam para si próprios.

Quando o táxi despencou no abismo sem motivo aparente, os vizinhos reclamaram, mas o que se passava, era que um escritor indignado, teve insônia e só pode combater aquilo com um taxista morto num conto publicado na página dezesseis de um livro de cabeceira que afinal, ninguém nunca lia.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Experimentos

Como algo que decidisse, entre um beijo no canto da boca que só afagava o outro e parte de uma viagem de ônibus que pudesse enfim, fazer sentido.

Era sim, era assim. Silêncio Soto Maior! Silêncio!

Acomodado em seu inverno; as orações cotidianas: dormir por sobre a colcha, tomar café sem ninguém ver, sentir sem ser ajudado.

Restava-lhe ser.

Silêncio Soto Maior.




Diálogo de Iguais

É como se o verniz, que há tanto tempo, que usei para me proteger do mundo estivesse saindo aos poucos e que somente nesse momento, pudesse me ver e rever o que fiz.

E desprotegido, perdesse todo dia, um pedaço de mim, cujo revés, me prostrasse entre uma cama de motel vazia ou um café no centro da cidade com pouco açúcar.

Feito em parceria com Rosa

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Das Piores Dores

As piores dores eram as que pairavam por sobre o ar, assim tão ingênuas e covardes, pois nem coragem possuíam para se concretizarem em algo concreto. Nem nos tickets de metrô, nem nas dores que falavam pelos rancores.

Não possuía nem tinha em mãos aquilo que pudesse ser suficientemente apontado numa situação objetiva que despertando ódio ou choro, apenas falasse por si só, assim sem intermediários; e que ao invés de se esconder por detrás de um abismo oculto e covarde dentro de si mesmo resolveria mover o corpo e a alma em direção à uma desistência legítima e que provocasse algum afeto guardado mas verdadeiro.

Mais nem aí, nem na segunda ou terceira situação limítrofe contava com as lágrimas que limpavam o terreno e os olhos, sentimentos, para um novo cultivo; atingir as situações limítrofes não eram tão difíceis, mas chorar por elas tornavam-se cada vez, demasiado raras e ocasionais.

O limítrofe avançava cada vez mais a oeste, e perdido no horizonte que ele esquecia dormindo às quatro da manhã, cujas lágrimas eram diamantes cada vez mais raros, e a dor transformava-se em uma visita banalizada, costumava dizer que algo precisava irromper.

A possessão tomou conta dos sonhos, e em nenhum momento Soto Maior logrou uma ajuda que não se esvaziasse em si mesmo.

Soto Maior, cujas mãos não encontravam mais as lágrimas nem os olhos, cujo cultivo de si próprio, provocou desistências, cortou-a, pelas beiradas, e depois de acabado o intento, queimou-a com um isqueiro, parte por parte...

E assim aquela carta esfarelou-se consigo próprio.

(...)

Amanhã enfrenta o mundo; amanhã, secará lágrimas inexistentes. Amanhã ele buscará mais pontos limítrofes. Estes não bastavam.

E era disto que tinha realmente, medo. Medo.



sábado, 31 de janeiro de 2009

Por curiosidade

O excelente jornal literário "Plástico Bolha", publicou uma poesia bem antiga que eu enviei para apreciação ao referido jornal em seu blog. Confiram.

No jornal impresso de número 23, o "Plástico Bolha" aceitou a publicação do conto Curriculum Vitae, um dos meus primeiros e preferidos; você pode ler o conto aqui, ou baixar o jornal em formato PDF no mesmo site.

E na cidade maravilhosa, calor, chuva, pré-carnaval...

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Da humanidade que sobrava

Sobrava-me humanidade no meio das lutas do povo, das causas que eram justas por que se faziam justas, mesmo que não precisassem apelar à justiça.

Mas ainda assim, estava lá, no meio da gente, da multidão, caminhando por motivos justos, mas por dentro faltava-me um algo, que preenchido por aquele todo, justo, fazia-me menos indivíduo e me tornava mais multidão.

E continuava faltando alguma coisa; um toque nas mãos, um cafuné nos cabelos, uma doce troca de olhares que não calava nem quando os cães do estado resolviam atacar.

E assim, minhas pernas seguiam, dentro dos vagões do metrô, cujas páginas andavam junto com a vida e o trilho dos trens, e eu podia ver uma ou duas estrelas brilhantes no céu que se faziam convidadas na janela do meu quarto, justamente naquelas noites em que me sobrava justiça, mas faltava-me tudo.

E pensei, que não haviam multidões, bilhetes ou movimentos políticos suficientes para acabar com aquele injusto ruído.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Jogo de Armar: Da solidão cotidiana

atualizado em 29/01/2008

Havia aquele som, aquele som inaudível e incoerente, cujas vozes famintas, ampliavam-se, mas que completamente imperceptíveis para mim, me faziam sentir, e sentir era algo obscuro ou inédito demais, como em um estado de overdose sânscrita, assim espalhado pelo canto do ônibus ou quando num gesto brusco, sob uma folha largada, cujo desespero secreto e particular impelia ao silêncio, apenas buscava no outro a sua própria imagem.

E assim, demasiadamente empático e largado pelo mundo e o mundo era justamente uma instituição, um aglomerado de gente sem sentido, gente nos ônibus com seus próprios e distintos propósitos e que se definiam por si mesmos; este mundo largado, de gente e de propósitos largados, costumava mover-se, segundo definições ocultas e inexpressivas, peças no tabuleiro misterioso.

Consciosamente a vida cotidiana reproduzia o fato que era mais psicológica do que própriamente metafísica: deus existia; e sempre com ironia.

Desconectado, o meu amor, aquele que nunca nascia de manhã, durante o beijo calado, mas que irrompia sozinho, largado no canto do quarto, entre quatro ou seis latas de cerveja, nascendo sob sua motivação, e que encontrava apenas a mim...

E eu transformava-me sem mudar definitivamente nada. Eu modificava-me, e apenas encontrava um amor sem par, uma paixão sem destinatário, uma flor cujo terreno argiloso, produzia um belo espécime temporal.

Eu amava sozinho.

No ritual medíocre do si-mesmo e cujo soluço permitia uma reflexão, desejava, desejava, com todas as forças que apenas dois sentimentos pudessem apoderar-me do "si próprio", os muito fortes ou os demasiadamente fracos.

Amor e tristeza, espalhados num copo de conhaque num dia de semana normal, pareciam acabar com o fígado, mas sustentavam verdadeiramente era o espírito. E era aí, na terceira golada, que acompanhava a espera, quase interminável, que o espírito forte, e o espírito fraco apresentavam-se: era o espetáculo da possessão.

Eu fingia não sentir absolutamente nada, e enquanto escrevia, algo se modificava, e era necessário suportar todo este peso, absolutamente familiar, mas nem por isso íntimo, pois apresentava-se estranho à mim mesmo em todas suas formas cotidianas. E era o que eu fazia, olhando cartas velhas, abrindo geladeiras novas, bebendo cerveja sem gosto.

Um homem que triste e é só não incomoda, pois decerto algo se ajusta neste parâmetro categorizável, a sociedade compreende a tristeza de ser só e rápidamente há um acordo tácito entre o indivíduo e o corpo social; surgem os amigos, as companhias, o terapeuta ou por fim, os remédios psicoterápicos, mas quando encontramos, e é neste caso específico que os poderes curiosamente não podiam de nenhuma forma me localizar, um homem que ama e é sozinho,(e eu Román Soto Mayor fui o primeiro a ser encontrado neste terrível ponto) tal fato descortina uma exceção perigosa, que compromete todo o sistema encadeado.

Como amar sozinho? Como tornar-se apaixonado sem um objeto de paixão? Se alguém ama a si mesmo, chamaríam-no de narcísico, mas este não é o caso, se fosse verdadeiramente o caso, estaria não encolhido diante do mundo, porquanto se estivesse olhando para a face no lago, amaria-me e desprezaria todo o cotidiano; não era o caso. E poderiam me acusar de não amar ninguém, e se alguém não ama nada nem ninguém, haveria de esconder uma fraqueza, ou uma amargura fixada no canto do olho; mas deste quadro não faço parte, a minha fraqueza decerto era revelar-me, e não esconder sentimento ou idéia nenhuma, coisa que tanto desaprovava.

E amo algo! Amo! Amo um alguém oculto! Algo que oculto faz-me sofrer exatamente por permanecer oculto, mas que ainda por isto, carrega uma febre, um aglomerado de sintomas dos quais não consigo me livrar.

Carrego o sintoma dos apaixonados, enquanto eles amam e deliciam-se no conforto e na segurança que o amor proporciona ao futuro, concretizado por uma mão tenra, um abraço resoluto, um olhar justo, eu cá estou, com os sintomas da febre, incontrolável e voraz, mas sozinho, cuja mesma febre dos que se apaixonam pelo outro, pela outra convivem em mim. Mas cá comigo, descobri da maneira bruta, que amo algo que definitivamente não existe. Não pode ser tocado nem visto. Não está, nunca esteve. Não me aparece, pois não é.

Entre insônias e cigarros acesos, debruçei-me por sobre este problema existencial. Miserável e terrívelmente existencial - homem que ama sem amar, nebulosa contradição, ama sem ver, ama sem ter .

Em um ponto mais adiante, aceitei parte de meu problema e de seus desejos, fiz a respiração baixar, a calma e o silêncio cresceram. A partir daí me viam com mais frequência, no canto do bar, nas filas quase vazias de espetáculos que ninguém queria assistir, ou simplesmente dormindo na última sessão e fila de cadeiras do cinema, vazio.

Espalhado no canto do ônibus, ou deitando bruscamente na cama como quem busca afeto, eu tervigersava, eu caminhava sem sair do mesmo lugar, eu esticava os pés mas não o espírito, eu não me bebia como possível, pois eu tinha desistido. Desistido das mudanças cotidianas, que pareciam todas iguais, do futuro, das possibilidades do inédito, que nunca se apresentavam, e enquanto a desistência me dominava, o ponteiro dos anos acelerou, e a espera tornou-se verdadeiramente um perigoso jogo de armar que me colocavam alguns mais paradigmas insolúveis.

Aceitá-los, implicaria em esperar, aguardar um milagre, um milagre do deus metafísico, e aí sim, poder com justiça e direito, amar com a febre dos ébrios. Recusar os horizontes dos milagres, implicaria em um movimento extremamente cuidadoso e que me posicionava diante do limiar do absurdo e do particular, cuja opção desassistida, era o deus psicológico, que se fazia vivo diante das expectativas, dos desejos, e da esperança alimentada sorriso após sorriso.

Meu nome era Román Soto Maior, o homem que diziam, amava alguém, amava alguém, que mantinha-se oculto.

Meticulosamente envolvido e imbricado pelos meus sentimentos, aguardava uma mudança, um som, um beijo ou aceno que modificasse tudo, mas no meu canto, e um canto que bastava-se tão só, me sobrava apenas um som inaudível e incoerente, um desespero secreto, algo que não se resolvia de imediato, e convertia-se sob meus passos, num delicioso e solitário jogo de armar.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Hymne à l'amour (tradução)

Edith Piaf

Composição: Edith Gassion / Marguerite Monnot / Geoffrey Parsons

Hino ao amor

O céu azul sobre nós pode desabar
E a terra bem pode desmoronar
Pouco me importa, se tu me amas
Pouco se me dá o mundo inteiro

Desde que o amor inunde minhas manhãs
Desde que meu corpo esteja fremindo sob tuas mãos
Pouco me importam os problemas
Meu amor, já que tu me amas.

Eu irei até o fim do mundo
Mandarei pintar meu cabelo de louro
(ou: Me transformarei em loura)
Se tu me pedires
Irei despendurar a lua
Irei roubar a fortuna
Se tu me pedires

Eu renegarei minha pátria
Renegarei meus amigos
Se tu me pedires
Bem podem rir de mim
Farei o que quer que seja
Se tu me pedires

Se um dia a vida te arrancar de mim
Se tu morreres, se estiveres longe de mim
Pouco me importa, se tu me amas,
Porque eu morrerei também

Teremos para nós a eternidade,
No azul de toda a imensidão
No céu não haverá mais problemas
Meu amor, acredite que nos amamos.
Deus reúne os que se amam.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Messenger de hospital

Marta desligou-se
Mais uma vaga
Na unidade de tratamento intensiva

De quando se encontraram e fizeram um retalho de vida

Vasilli costurou a rua da Alfândega com a Senhor dos Passos; era um hábito antigo aquele de passear por entre os transeuntes, esquivar-se das lojas coreanas e observar aquele movimento frenético. Sempre produziam as mesmas paranóias individualistas; repleta de megalomaníacos, era difícil executar alguns passos de música, sem que esbarrassem sempre na ilhota artificial ciente de sua estagnação, a universidade atrás do mercado do Saara era seu oposto, não por que desejasse, mas sim, por que estava fundamentada numa dissociação paranóica, num estilo de vida cimentado em alguns aspectos populares que dissimulavam apenas a tentativa mórbida de legitimar-se através da conquista, do domínio; bárbaro, puro, e simples.

Conquista de cargos, vagas, conhecimentos, um pouco de status e voilá. Não pretendia ser panfletário, apesar do que, isto era um tanto quanto redundante ou contraditório... Romanos falando de bárbaros!

Jogou as chaves da porta sobre a mesa de centro. Não havia muito o que fazer além de olhar algumas poesias antigas.

Havia um pouco de caos dentro dele. Partes que chegariam a um acordo breve.

O telefone tocou. Era a ruiva.

Onde você está! Ela gritou! Onde você está caralho! Que merda você está fazendo! Por que me faz sofrer assim seu desgraçado. Nós tínhamos um maldito de um acordo! Um acordo!! Entendeu!

Ficou lá com o telefone na mão, esperando o acaso bater, mas a única coisa que sentiu foi que estava sendo observado por si próprio. Desligou, desconectou o telefone sem raiva, mas cuja necessidade clamava por aquela ação e pensou em dormir.

Mas seu celular tocou. E ele leu a mensagem: - Estou chegan#d%o.

Luz demais em um ônibus, e lá uma caneta, e um corpo rolando, rolando com blocos de papel na mão, e sentindo que dentro daquele ambiente lembrava de todos os sonhos.

Beber cerveja com orgulho. Não era bem o que queria e nem sempre, nem sempre caralho, nem sempre queremos o que surge no horizonte. Pois às vezes sentia vontade de fuder o mundo.

A vida está cheia de sentido. Um sentido que exasperado, reclama vingança e felicidade.

Uma vida repleta de casos, acasos, e de caos. Uma vida que pede um metrô às cinco da tarde, pede uma viagem sem data, pede uma cerveja na terça e um desgaste emocional ou um corte na mão no dia dezessete.

Ah vida! Vida comiserávelmente reduzida num dia de chuva, vestida sob um casaco de flanela!

Há um momento no mundo. Em que se bastava diante do mundo. E que nada além do eu, podia ser mais importante; nada!

Leitor espera! Antes de matar a leitura com teu desprezo, peço-te que mantenha fiel à um ou três parágrafos! Ainda virá Isabel! E Isabel, vinha, vinha desajeitada dentro de um ônibus cheio de gente amorfa - segundo ela, mas ela respirava desprezo e trazia consigo, heroína e conhaque, quando em seus melhores dias se fazia assim, totalmente legitimada.

A esta altura, podes e tem todo o direito de verificar que esta súplica exagerada não é capaz de prender tua atenção.

Eu, este acrobata desajeitado das letras, este narrador zé-comum preciso fornecer um bom ou se não estético motivo, para que teus olhos leiam o que minha mente torta produziu. Continua correto, mas alerto que não é da nossa concordância que este texto coxo nasce. Este texto nasce de uma inquietação que é só minha, mas por algum motivo que desconheço, e tu deves sim, saber melhor do que eu, resolvo compartilhar contigo, senilmente dominado pela estética, que esta dor é tua também.

Numa janela, Isabel, muito cínica, escrevia com o próprio sangue, os pulsos já cheios de chagas e chocando a si mesma produz:

Vermelho sangue
Vidro quebrado
Grito no escuro
Silêncio arrastado


Isabel sempre perdida; e diziam dela: mal amada, esquisita, doida varrida.

Isabel solitária, mas cheia de si. Com conhaque e suas manias. Nunca se encontrava.

Nem no Robson, nem no Ricardo, nem no Yuri e muito menos com aquele sexo casual, que tanta inocência lhe inoculava.

Isabel, um fragmento de vida, uma vidinha de mulher farta. Completa de si mesmo e de suas manias. Manias irritantes que ninguém e que todos percebiam sempre transbordando o limítrofe do aceitável.

Acordou amarga e resolveu encontrar alguém e esse alguém resolveu ser Vasilli. Pois a vida, para Isabel era assim; ou amarga ou insossa. E assim, seguia, seguia meio cínica, sangrando no ônibus, pintando janelas com hemáceas ou apenas assim, meio desesperada.

Quando sentava na varanda com o gosto da bílis e da cerveja, ela normalmente adivinhava o momento em que podia utilizar aquele mecanismo; o único mecanismo, o que revelava o cinismo da vida.

Quando ia embora dos lugares, ela nunca avisava a ninguém.

Ele, Vasilli, o mentiroso, gostava quando ela caminhava nervosa pela casa. E às vezes ela buscava cigarro, ou haxixe. E fazia-se a paz.

Pois é, ele sempre insistia que Isabel tinha um quê de degenerada, mas ela negava. E talvez, fossem apenas cigarros de menta, as ligações no meio da madrugada, ou a intensidade do amor, um amor que se não durava mais do que uma noite, ou um capricho, não omitia informações, era visceral, cru, e até doído para o mundo que ostentando a mentira simulava-se, mas decerto, era TOTAL, era total e entregue, até o último segundo do orgasmo.

E naquela noite resolveu encontrar Vasilli, Isabel, que naquela noite específica, não bebeu, não fumou e resolveu amar Vasilli de uma forma tão tenra, que ele achou que aquele corpo não era dela naquela noite tão bárbara, pura, simples.

Amaram-se, amaram-se naqueles quinze minutos de amor; mal sabiam que no termômetro mundo, o amor fazia-se de uma mediocridade tão paupérrima, de uma obviedade tão espúria, que não cabiam deste modo, Isabéis, casualidades, sinceridades virais e muito menos os encontros Vasillinianos.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Modelo de carta de amor volume 05 - Livre para Usar e Abusar

Por sob a fachada, há um homem não tão complexo, que busca algo não tão requintado, e que diante da simplicidade de um beijo, de um abraço, ou de algo que se assemelhe ao mais próximo da sinceridade refugia-se em torno de desejos efetivamente simples.

Olhar as nuvens acompanhado, beijar a fronte enquanto ela pensa ou diz outra coisa concentrada, e é delicioso desconcentrá-la; piquenique com formigas e paixão, uma andar que emoldura um delicioso jogo de esgrima sem vencedores e vencidos, um rascunho de poesia num guardanapo, cócegas no parque.

O toque das mãos, o olhar sem promessas e defesas, o abraço que engole o mundo encolhido diante do beijo, as línguas que se tocam e fervem algo que é muito mais do que um amontoado de células nervosas; a fé no circuito simples da vida.

O cheiro de grama molhada, a chuva que encara o casal, o desafio sobreposto em manuscritos com recortes de cartolina vermelha, a vontade, o desespero de permanecer sozinho junto da multidão, das flores.

Nas instruções de uso, as da página 27 que colorem o contrato de garantia do eletrodoméstico comprado por cinco maldosas prestações, há uma cláusula escondida e colocada por um bon vivant do setor de arrecadações, e que diz respeito à como os amantes devem se portar nos dias da semana, e uma delas diz que os beijos devem ser medidos por intensidade, pressão e desejo.

Devoluções do manual não são aceitas, todos os que tentaram e foram poucos os que fizeram, ganharam beijos e devolveram-se estupefatos por sobre o balcão.

Num estado desconhecido de um país vizinho da Birmânia, os homens e as mulheres que se apaixonam são obrigados à conviverem com pacientes terminais uma vez por semana e se comportarem nos dias restantes como se a doença fosse contagiosa e não houvesse vacina, vergonha, ou saída.

Nas salas de embarque de um país da América do Sul, há um setor específico para os mais apaixonados. Os que entram precisam provar sua paixão e convencer metade da fila do embarque. Ganham rosas, café da manhã e um embarque e destino à esmo; o coração é o que os guia.

Enquanto isso, na Península Ibérica, alguém, fumando um cigarro em uma varanda, completamente fria e molhada pelo tempo, sofre por um amor não-correspondido. Há vida, e não só flores.

Numa estrada do interior do sul da Itália, alguém carrega flores, sem saber que mãos irão recebê-las, nunca sabemos; o processo de colher as flores não é tão apaixonante, são treze trabalhadores informais, sem direitos trabalhistas e que quando apaixonam-se, por razões ocultas ou óbvias não desejam ver flores, querem filhos e casas.

O ritual de venda na urbe já desapaixonante tampouco seduz: e é por isso, que os verdadeiros e verdadeiras apaixonadas, roubam as flores ao invés de comprá-las no mercado local.

Alguém persegue um ladrão de flores, ele se esconde na esquina e o vigia que nunca amou ninguém desiste do intento.

O ladrão, que apesar de não estar amando ninguém(mas pretende), guardou a flor e a história para ela, ela mesmo, que ainda nem chegou na sua vida, mas que está oculta por uma profunda intuição, uma história e um destino bonito, que se fez mesmo em literatura.

Colocou a rosa e a idéia em cima da escrivaninha, apagou a luz, e prometeu escrever e ler tudo aquilo para ela, e quando chegasse o momento, ela saberia, quando ele resolvesse ler tudo aquilo, desde o início, que é apenas o coração que os guia.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

De quando se fez o primeiro milagre - Parte I e II

Agora que leio, e sinto, entre uma janela fechada ou uma terceira encomenda e carta depositada no destinatário errado, que possuo apesar da incapacidade intríseca de percorrer estações sem me molhar e quando chove a capacidade de andar e amar despretensiosamente pelos paralelepípedos amarelos; uma capacidade incrível de renovar todas e minhas esperanças.

Sim, eu possuo; e como se fosse o azul do céu que não anda tão perdido mas entretanto observa-se com mais exatidão, quando dorme, seja no ponto de ônibus, no metrô, na água salgada que envolve o sono mais profundo, eu prossigo... E caminho, eu caminho e crio esperanças, umas por detrás das outras, como formigas, singelas, e agradáveis, que andam às centenas pelo meu quarto, despretensiosamente ordinárias e felizes.

Não tão especial, eu abandono, abandono-me, abandono-a nos sonhos para resgatá-la na realidade, que se não é tão especial, aparenta pelos acasos, dizer-me algo que as contra-capas e as vaidades e belezas pessoais procuram ocultar.

Flanqueio-a e ela nem vê, mas agora percebo-a, com mais exatidão à princípio, como aguardasse um afago que nunca virá, sem esmero, sem destino, sem naturalidade, cheio de mesóclises irredutíveis e inúteis com suas trouxas inesperadas.

Lembro-me do seu cheiro, da poesia que eu nunca recitei, do encontro que não houve, mas haverá, das flores, da conversa, do futuro, haverá! Lembro-me, lembro-me de tudo o que eu disse.

Lembro-me dos contos e amores inacabados, como se postam e se conservam ao mar.

E lembro das memórias dos sonhos. Da praia que tudo carrega. Do amor que tudo leva. Da paixão que tudo conquista. Do abraço que tudo desmorona.

E aí esqueci de mim mesmo, como uma janela fechada, que por amar despretensiosamente andou às centenas no quarto, e com cheiro de poesia, de naturalidade, fez-se no beijo e na surpresa daquele amor platônico agora concreto, irresistível, porém ainda abstrato. Pois sozinho, lhe cabem esperanças, e da mesma forma de que tudo leva, aqueles olhos ainda haverão de encontrar os seus, que conservados ao mar fizeram-se tão inacabados, sem ela.

[...]

E hoje acordei assim, normal, com vontade de passar o dia costurando sonhos. Peguei tudo o que tinha, um cigarro, meia caixa de fósforo, uma mochila, vergonha e quatro camisas, um caderno verde; saí sem princípios e isto foi até o meio-dia.

Na mesinha de centro o relógio apitava, e não era meu. A geladeira jazia ligada e o fundo da casa, acrescia-se de uma água-furtada, que ligada pelos tijolos e pelas insônias dos anos anteriores faziam dos cômodos pasárgadas.

E ela, ela que nem me lembrou, mas que eu fingi esquecer depois do almoço, na minha imaginação dormia, dormia sob as águas-furtadas que incriminavam metade de mim, cujo esboço feito de esmero e efêmero era pura vodka-estraga-poemas.

E quanto mais eu me deteriorava, podia ver o mundo deteriorando-se. E o mundo deteriorava não só enquanto eu me deteriorava, mas era algo além, pois minha deterioração estava aquém, e sim eu sabia, sabia quando nos piores dias percebia, que mesmo que eu não me deteriorasse haveria algo ou alguém para se acabar no finito do mundo. Pois o mundo se acaba sem mim. E isto era uma tragédia extremamente narcísica... Eu adorava.

A instituição imaginária da sociedade convivia bem consigo mesma, mas eu, parte disto tudo, não me encaixava, e tentava seguir as velhas fórmulas, os antigos esquemas e isto implicava em manter a esperança.

Algo real e concreto começou a germinar, irrompendo as cascas e forçando o solo e as desilusões acomodarem-se sob o novo quadro: a luz, o orvalho perante às cascas, folhas, no céu da verdade empírica e esmagadora dos fatos; fatos que se faziam só, eu nascia ali, na esquina da morte, que não fazia peso, pois era parte do todo e das cinzas do novo, reciclando no final dos finais. Era a morte cotidiana.

Renascia sob o tom da dúvida; o sal e o tempero eram só meus, naquele momento íntimo do paladar, algo meu.

O mundo terminava em mim, era uma fronteira possível mas que odiava o outro em si mesmo, na água-furtada, no poema do outro que feito para mim, me escolhia sem que para isto eu tivesse esmero. Todavia guardara empatia.

E demasiadamente empática, empático, nos assemelhávamos, mesmo assim, largados na avenida ordinária do mundo.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A estranha vida de Román Soto Maior - Do Verão

Nos dias mais quentes, apesar do sol, o verão não havia chegado no coração de Román Soto Maior.

Mandou uma carta indignada para as agências que controlavam o tempo e a temperatura mas ainda assim, recebeu uma resposta que dizia que a temperatura de seu coração não dizia respeito àquele departamento; que procurasse um advogado.

Feita a sugestão, processou o Estado e o Sol. Perdeu as primeiras instâncias e ficou torcendo para que o destino ou a justiça, lhe dessem alguma notícia boa.

Brigou com o advogado e com deus, ruivas não constavam em contratos e nem nasciam sem ajuda de tinta.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Amávamo-nos.

Ruiva.

Ruiva, ruiva... Ruiva.

Eu lhe abracei, e aí nos beijamos quando o relógio fez aquele ruído, e quando bem, e quando bem, algo errado, algo errado, exremamente bom, aconteceu.

Você se distraiu. Eu fixei meus olhos. E seus olhos, verdes, tão bonitos, encontraram minha angústia no infinito. O infinito que cabia em nossas esperanças.

E quando nos beijamos pela primeira vez, quando nos amamos sem toque. Quando relaxamos nossas defesas, foi aí ruiva, que algo aconteceu.

E aí, você; ou talvez tenha sido eu... Nos encontramos. E foi lindo ruiva, foi lindo.

Algo desenvolveu-se. Pouca verdade.

Acabei preso, por que o alçapão era você.

E eu, tão frágil, e eu tão pouco verdade, e sem relaxar, encontrei a esperança que cabia exatamente nas nossas angústias. Minhas asas, e seu vôo de anjo, sobrevoando as nuvens, as que cabiam nos nossos sonhos, estas sim, que nos elevava às sinceras atmosferas; e aí voávamos, sem anjos, mas com muitas esperanças.

Eu voei ruiva. Eu voei por sobre tudo. Eu abandonei o concreto, o tijolo.

Eu era um anjo ruiva.

Eu perdi. Apesar de não ser um jogo.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Só cumprem ordens

O juiz só segue a justiça.
O oficial só cumpre a ordem do juiz.
O policial só executa a ação de despejo.
E o povo?
...
O povo só sofre.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Quando chorou sem ninguém ver

Cansou. E isso foi na segunda-feira.

Na quinta estava exausta.

Aquele quarto maldito, cheio de gente maldita, de angústias malditas, de fantasmas e dores malditas era feito de guimbas de cigarro, de cerveja e de saudade.

A saudade era ridícula, como os recados virtuais, as cartas que nunca chegavam e as dores mal paridas.

Filha da puta maldita.

Nem um desastre a filha da puta tinha, apenas um baralho faltando cartas, algumas ausências e uma dor dentro de seu mundo perfeito. Perfeito demais.

Estava tudo ruim, mas ela fingia felicidade. Sorria, cumprimentava, falava quando chegava a hora e dava até bom dia para os que lhe odiavam.

Sorria para os cínicos, beijava a mão dos covardes e enganava os espíritos ruins.

A dor de cabeça aumentava. Cefaléia absurda que lhe pegou na manhã em meio a agitação. Doía.

Resolveu tomar uma decisão: daqui pra frente tomaria calmantes. Mas mesmo assim tinha medo de um tumor.

Pegava o ônibus aguardando um amor, mas só lhe vinham trocados e paisagens.

Brusca, diziam.

Quando morreu, amigos vieram de toda a parte para dizer que se importavam. E acreditando nisto, muitos pensavam que se importavam realmente.

Habituando-se ao ridículo confessaram-se e viram-se livres da vida no dia de sua morte, era uma família feliz.

Poucas pessoas fizeram tanto por ela do que Vasilli e Anatole.

Anatole conversava sobre filosofia. Vasilli era cínico tal como tal. E ela estava estendida dentro de um caixão.

Semana antes, comeu pizza e fumou haxixe. Mês antes, fez caso com algumas latas de cerveja.

Na semana seguinte despediu o terapeuta.

"Terapia nunca mais!"

Caminhou novamente só. Estava frio, ninguém viu.

Não iria pedir por favor.

Caiu em si olhando para um aquário no bairro da Liberdade.

Comprou um biscoito chinês, abriu e leu a seguinte mensagem: "A dança é a linguagem oculta da alma".

Que merda qualquer aquilo enfim lhe serviria? Ninguém viu.

E ela. Ela despediu o terapeuta, comeu biscoitos e continuou assim, com insônia. E depois morreu; esquecida naquele enterro cheio de gente.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Frases

"Se és escritor, escreve como se tivesses os dias contados, porque, na verdade, eles estão-no quase todos."

Thoreau

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Fodendo o ano novo

Numa noite que não significava nada, e que nada tinha a dizer além dos personagens, coisas aconteciam e as estrelas nem por isso deixavam de se esconder.

A noite resolveu não citar nomes.

Uma mulher às quatro e cinquenta desgostosa do namorado, bêbada e patética por ter encontrado um homem não tão retangular como de costume, resolveu chamar sete gorilas amigos, que a carregaram, pagaram mais cervejas e levaram a desgostosa bêbada, e patética para o acalento do machismo, do namorado e dos próprios símios, desgostosos com eles próprios, mas profundamente acalentados pelo namorado traído.

Um namorado traído por si mesmo, que juntava uma bêbada não tão patética e sem álcool, fazendo serviço na Barata Ribeiro em Copacabana, e que ganhava a vida atraindo gorilas, apesar de acabar com a antropologia de boteco em noventa por cento dos casos quando era obrigada a foder com força aqueles homens tão machos, travestia-se e era assim sua vida, uma vida bandida.

Travestida, a andrógena linda e amorosa optava ou por novas regras gramaticais que lhe aplicassem gêneros simultâneos ou ainda assim, conseguia optar sóbria, por uma conversa racional e decente(!), onde os conselhos salvariam um macho, uma fêmea e um amontoado de polietileno, que inevitávelmente chocariam-se no meio da avenida Brasil caso a andrógena não intervisse junto com o destino.

Conselhos de bicha.

Um macho sensível, não tão macho por ser sensível, esbaldava-se numa boate fêmea quando ele sabia que aquele lugar travestia-se de macho; onde até as mulheres masculinizavam-se ignorando-se e ignorando umas as outras, e uns aos outros, onde o que valia realmente eram as relações de poder e não o sexo do sujeito ou sujeita envolvida e sujeitada.

O sadismo vinha com a comanda e podia ser pago à vista ou com sete cheques parcelados, desde que o gênero constasse no verso daquela cartolina mal ajambrada.

No final da noite, o macho sensível encontrara um cavalo, um cachorro e outras forças da natureza que acabaram lhe descrevendo a noite sem necessidades de descrever poesias infantis.

O mundo animal lhe bastava.

Andrógenos eram todos sob a cerveja masculina do poder.