quarta-feira, 1 de julho de 2009

Fui-me embora para Pasárgada

Caros amigos e amigas, perdoem meu incrível lapso de memória. Mudei-me para pseudocontos.wordpress.com pois muitos que tentavam navegar por estas terras turvas, não estavam conseguindo acessar o blog inteiramente, pois aparecia um aviso de um suposto e incômodo vírus.

Alguns contos que estão aqui foram remanejados para lá. Uma seleção rigorosa fora feita e peguei o que achei que havia de melhor escrito aqui(o que resultou em uma limitada escolha); atualmente também ando envolvido com o planejamento com mais alguns amigos, de um livro de autores independentes(odiamos o termo "amadores").

Meu sumiço(parcial) deve-se à estes últimos fatos relatados. Espero que gostem do novo endereço.

Este blog ficará no ar até o humor do autor permitir.

sábado, 9 de maio de 2009

Tesoura de Pontas Arredondadas

atualizado em 11/05/2009!

Uma conta de quinhentos reais matou seu amor. Ele não dramatizava, e sentia que o drama lhe escapou após o velório, quando na terceira reflexão sobre um dos paralelepípedos que lhe pareceu em desacordo com os restantes, lembrou que não precisaria mais frequentar as festas de gente medíocre que tanto odiava; pareceu um consolo, mas no fundo no fundo se falasse em outras épocas seria sim, um egoísmo, e dos grandes.

Mas havia o pragmatismo dominante cuja nova religião acalentava parte da alma, aquietava o espírito, dominava o corpo e vez ou outra derrubava algum valor antigo.

Mas aquele sorriso verde não; aquele sorriso cujo peso, o do metrô, inesperado e absoluto, durante a experiência cruzada num cheque e num esbarrão desenhado por uma situação noturna, clamava futuro e era por vezes opressivo, trazendo desintegração e isto preocupava completamente a comunidade.

E aquelas pessoas, menores do que um arroz de segunda-feira, ou de um saleiro, ou de uma copo descartável que ninguém sabe realmente se é ou não reciclável, e ninguém sabe também se as pessoas o são, agrupavam-se, atrapalhando o destino de vida que ele idealizava. E sem consultar o todo poderoso, vez ou outra este lhe enfiava um ônibus saindo do ponto, uma carta de despedida, uma oportunidade de estágio jogada às traças, um amor impossível, uma idiota que queria conversar, quando ele desejava apenas silêncio.

E o divino era qualquer um: um esbarrão, uma música de Charles Mingus, uma kombi com um filho da puta egoísta na direção!, um idiota bem intencionado que estragava tudo, tanto à si mesmo ou sua boa intenção, e a linda ruiva racional que na hora dos testes secretos e pessoais que ele encomendava no intervalo do gole da cerveja, falhava, falhava comiseravelmente diante deste mecanismo divino, e aí deixava de ser ruiva. A noite apagava e faltava-lhe vontade e clemência para dar mais uma chance àquela possibilidade vermelha, roja e feminina, que não conseguia passar pelos testes afetivos mais básicos e ainda assim, num balé semi-ridículo, insistia em não tornar-se plena, e desgastava-se à ponto de não ser suficiente em si mesma, e ele, ele odiava a auto-piedade, e foi por isso que quando a verdadeira morreu, não resolveu despejar meia lágrima, por que tinha coisas mais importantes à se fazer, como reler Rauyela e arrumar aquela parte do armário ignorada durante anos.

As falsas ruivas falhavam. E quando uma destas, reprovava-se, reprovava-se por atitudes que desconhecia ter, e mesmo que resolvesse por algum motivo explícito obter, como num passe de mágica, de teatro ou de pura estupidez(e se alguém lhe informasse do ponto de inflexão exato) em que pudesse se adaptar para vestir o arquétipo da melhor maneira possível, ficaria reprovada, pois seria o mesmo que uma cola, e os testes afetivos que ele silenciosamente construía, eram definitivamente sem consulta. E ele não culpava-se, pois cada um possuía testes secretos que não revelavam para ninguém e que difícilmente, mesmo que revelados corresponderiam ao verdadeiro teste, guardado em segredo, quando revelado, modifica-se internamente como num mito antigo que escutara[1].

Ele mastigou as nuvens, recortadas após um erro de calendário, com uma tesoura de pontas arredondadas; que não agrediam a infância e na mesinha de centro um campeão cheirando uma carreira de pó não tão vencedora, mas que surpreendia sempre que parte daquele teatro embarcava no políticamente correto da divisão do cartão American Express; vencido.

E só no seu mundo, aqueles viciados eram poéticos à ponto de ilustrarem pouco de seu cotidiano; na maioria das vezes, e isto fugia à poesia, qualquer vício previsível era tão poético quanto rotinas classe-média.

E aí havia um ritual específico que pontuava o ambiente.

O lábio mordido, o sussurro no túnel; e aquele mictório, onde ele teve de desmanchar aquela decepção orgânica pensando na ruiva, aquele, no canto do piso, com aquela urina, velha urina e assim, sentia-se poético, sentia-se amável e com e como, uma gorfada sincera as pessoas ririam, ririam com o som do vidro, da caneta, da nota, da fungada.

Sucediam os testes secretos administrados pelos campeões. O intuito era credibilidade; mas naquele momento não mais importava, pois a confiança só fazia sentido na largada, que durava cinco ou seis minutos, na esquina daquela vontade de se matar, que perdia para uma prestação parcelada de morte ritmada que alguns chamavam de festa. Mas e durante a prova havia sempre a possibilidade de alguém se fuder numa Tamburello, e morrer como um fracassado, com pó nos culhões e uma atendente frígida injetando insulina ou fazendo transfusão de sangue em plena Avenida Brasil, que de nome, já basta o fracasso.

A felicidade teve nome; e isto aconteceu setenta e seis horas depois da festa, pois só se é feliz quando se conhece a desgraça. A felicidade foi enterrada em frente à passarela dezesseis num dia ensolarado, que não acordou meia dúzia de viciados, demasiadamente preguiçosos e avessos ao sol, mas conseguiu cumprir seu papel de trocar receitas de bolo de mães cristãs que copiosamente amavam seus papéis sociais no intervalo do coveiro e das lágrimas, sussurrando as mesmas frases que eram distribuídas e vendidas sistemáticamente pelo vendedor de jargões-para-serem-ditos-em-enterros, que diante aquele quebra-cabeça mal-ajambrado, colecionou uma pequena fortuna e foi o verdadeiro show-man por detrás daquele enterro.

E quando aquele filho da puta, que entrou armado, usando o mesmo pó, a mesma arma da novela das oito, o mesmo argumento, e a mesma dívida(ele não tinha American Express - portanto não podia parcelar a vida nem a agonia), ela morreu, ela morreu por que a filha da puta teve azar, e só tinha quinhentos reais, e ele com pó nos culhões, precisava de dois mil...

Bateram na Tamburello, e se fuderam, se estatelaram e a festa acabou:

- A festa acabou porra. Acabou, dizia mais um viciado cujo nome pouco importa, mas que estava mais preocupado era com o pó manchado de sangue, do que com ela, fudida numa noite em que não deveria, mas procurou sair de casa.

Se Deus não conseguira lhe emprestar cem pratas, deus não servia pra porra nenhuma: falou no enterro e metade do velório não notou, pois aquele novo ansiolítico distribuído pelo ministério da saúde era o melhor que já vira; mas a outra metade notou, e achou poético, e ele foi recebido com aplausos calorosos, pois há muito tempo ninguém recebia uma demonstração tão vívida de emoção e sinceridade, pois aquela sociedade já fora completamente consumida pelos ritos sociais e degenerava-se à perfeição.


[1] Amaldiçoado por um deus antigo, um pastor de ovelhas queria casar, uma deusa lhe deu um artefato poderoso, uma urna mágica, que continha um objeto dentro desta.

Esta urna possuía um tesouro e uma função mágica; aquela que visse seu conteúdo ficaria terrívelmente apaixonada pelo pastor. Arguto, este tentou usar livremente sua caixa mágica, mas viu-se terrívelmente frustrado quando descobriu que o objeto tornava-se invisível quando abria a urna para suas pretendidas. Descobriu a seguir que ao contar o que a urna guardava, o objeto aparecia; mas havia um truque que demonizava aquele artefato; toda vez que seu dono revelava o conteúdo, este modificava-se, e ele sempre passava por bufão e mentiroso. Sempre que revelava o conteúdo da caixa, o conteúdo se alterava e então ele retornava à estaca zero. A maldição jamais se encerrou, até que o pastor ficou pacientemente aguardando alguma mulher que conseguisse visualizar o conteúdo da caixa sem que este a revelasse, para conseguir se apaixonar, falhou e morreu só.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

A hora que nos vence

A hora nos vence. Os ponteiros nos dobram.

A falta de luz então nos derrota, assim, como num comentário que nem tentou ser poético, mas foi. Foi sem saber, e só soube quando da rotina alguém escutou e guardou aquilo ali: a poesia, os ponteiros dobrados, a hora vencida, que aquilo tudo, aquele todo incoerente, enfim fez sentido.

Foi assim, naquele terceiro trago, depois da pigarreada sutil, mas estúpida, que ele dobrou a poesia, guardou no bolso, tomou a rotina, e foi ali, foi além, ali onde apenas a cerveja fazia sentido.

Ele, de cabelos e de vontade mais curtos, completamente desgrenhado de valores, permitiu na pior quinta-feira do ano, sentir saudade e tensão.

Comia ansiedade, mastigava a angústia no canto da boca daquele siso que doía; seus pés não paravam de tocar uma bateria imaginária, e as mãos irriquietas tamborilavam a mesa, cheia de papel-carbono e situações limítrofes.

Dependente.

E aí, bem ali, na frente dos ponteiros dobrados algo se revelou, e ele acordou, assim sem poesia.

- Próximo! Pró-xi-mo!

Três horas da tarde, logo logo, este banco maldito fecha.

E os ponteiros, vão me dobrar.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Treinamento de Incêndio

Treinamento de incêndio!

Foi aí, que eles falaram a mesma coisa: fuja para o norte, fuja para o norte. Abre a primeira porta, vira a esquerda, dança, corre!

Naquele pedaço de vida, que ele descendo as escadas; assim, no canto daquele suicídio sem coragem, que ele e ela se fizeram.

De incêndio porra!

Mas era apenas um treinamento, de suicídio, de um incêndio... no canto da primeira porta. Vira a esquerda, corre, corre.

sábado, 4 de abril de 2009

Universitário de Merda

Aquele universitário de merda, era o mesmo que entendia quase tudo, a não ser o que não era ele próprio.

Aquele sarcasmo maldito escondido na terceira cárie, mas universitários não tem cárie. E era ele.

Aquela merda de tabaco ruim. Aquela dura, que eles tomaram. Mas eles eram brancos, brancos e estudavam na PUC.

O policial negro, o capitão do mato, que trata o povo, e o cartão de crédito de medicina com respeito, o juiz mulato, que pra ser exceção, resolve virar uma regra. Reacionária e régua, intransigente, que mede todos pela cor.

Os negros favelados que se fuderam e você só viu naquela página de jornal que o retardado da 406 limpou, sob você e seus risos, comerciais de tv, ali, assim, com famas nos olhos.

E ele, ele assim, no meio de tudo isto, que nem identificação de classe tem, mas já se posicionou, ele aquele merda ousado. Aquele hippie de botique, aquele filho da puta sujo. Sujo.

O oficial de justiça, que sob sete anos de concurso, consegue falar que só cumpre ordens, mas não diz que goza modesto quando tira o extrato do banco, ali, onde se esvai a justiça e o prazer, e avante, adiante de uma ereção do seu caráter curto, desdobra-se uma ética de onze, ou doze centímetros.

Aquele merda, empilhado na calçada, era teu pai, sem o pistolão da Evaristo Freitas, sem o coronel da Gracindo Farias, sem ajuda daquele teu avô canastrão e corno!

Aquela caixa de papelão, era tua tv, com big brother, com quatro arrabaldes de madeira, e ar-condicionado, com aquele corpo sujo estendido no chão, aquele que você estudou na aula de sociologia urbana.

Aquele universitário de merda, aquele merda no espelho, era você. Era você.

Aquele merdão, que sorriu sem graça e não gostou do conto, era você, era você, um homem relativo, empilhado, caráter curto, cego, com um cartão de crédito cretino sem cárie, e que passava pelos capitães do mato assim, completamente regorgitados.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Fronteiras

Nestas fronteiras, nossa fome não cabe
Linhas que inventaram, para manter
Nossos corações e corpos calados

O capitalismo é contra o amor
Ele odeia a felicidade

Encurtadas as distâncias, derrubadas as barreiras
Destruídos os feudos da urbe,
Urbe cinza de prazer castrado

Eu te saciaria
Tu viraria água
Eu sede

O capitalismo pois bem
Este monstro insensível

É contra o amor

quinta-feira, 26 de março de 2009

Do primeiro milagre - Parte I, II e III

Agora que leio, e sinto, entre uma janela fechada ou uma terceira encomenda e carta depositada no destinatário errado, que possuo apesar da incapacidade intríseca de percorrer estações sem me molhar e quando chove a capacidade de andar e amar despretensiosamente pelos paralelepípedos amarelos; uma capacidade incrível de renovar todas e minhas esperanças.

Sim, eu possuo; e como se fosse o azul do céu que não anda tão perdido mas entretanto observa-se com mais exatidão quando dorme, seja no ponto de ônibus, no metrô, ou na água salgada que envolve o sono mais profundo, eu prossigo... E caminho, eu caminho e crio esperanças, umas por detrás das outras, como formigas, singelas, e agradáveis, que andam às centenas pelo meu quarto, despretensiosamente ordinárias e felizes.

Não tão especial, eu abandono, abandono-me, abandono-a nos sonhos para resgatá-la na realidade, que se não é tão especial, aparenta pelos acasos, dizer-me algo que as vicissitudes do cotidiano, as vaidades e belezas pessoais procuram ocultar.

Flanqueio-a e ela nem vê, mas agora percebo-a, com mais exatidão à princípio, como aguardasse um afago que nunca virá, sem esmero, sem destino, sem naturalidade, cheio de esperanças e sonhos irredutíveis, inúteis com seus desejos inesperados.

Lembro-me do seu cheiro, da poesia que eu nunca recitei, do encontro que não houve, mas haverá, das flores, da conversa, do futuro, que haverá! Lembro-me, lembro-me de tudo o que eu disse, assim, para mim mesmo, como se falasse para ela, mas ela... Ela não existe. Ela é um pedaço meu, um pedaço meu que clama e conquista o mundo ao meu redor, um pedaço que entrego, e desperdiço, vez ou outra, em novas, velhas e recorrentes esperanças.

Lembro-me então, dos contos e amores inacabados, como se postam e se conservam ao mar.

E lembro das memórias dos sonhos. Da praia que tudo carrega. Do amor que tudo leva. Da paixão que tudo conquista. Do abraço que tudo desmorona.

E aí esqueci de mim mesmo, como uma janela fechada, e de juventude, que por amar despretensiosamente andou às centenas no quarto, e com cheiro de poesia, de naturalidade, fez-se no beijo e na surpresa daquele amor platônico agora concreto, irresistível, porém ainda abstrato. Pois sozinho, lhe cabem esperanças, e da mesma forma de que tudo leva, aqueles olhos ainda haverão de encontrar os seus, que conservados ao mar fizeram-se tão inacabados, sem ela.

Fim do Primeiro Tomo.

[...]

(Sob uma noite fria o poeta escreve)

E hoje acordei assim, normal, com vontade de passar o dia costurando sonhos. Peguei tudo o que tinha: vontade, vergonha, cigarros, meia caixa de fósforo, uma mochila e quatro camisas, sendo uma verde; saí sem princípios, e isto foi até o meio-dia.

Na mesinha de centro o relógio apitava, e não era meu. Eu não me importava.

A geladeira jazia ligada, e o fundo da casa acrescia-se de uma água-furtada, que ligada pelos tijolos e pelas insônias dos anos anteriores faziam dos cômodos passárgadas e conectavam-se com um sonho antigo, pontuado sem motivo como uma pedra de gelo caída e morta em minutos no centro da sala sem nenhum aplauso ou alarde dos convidados, e uma música que muitos queriam escutar, mas ninguém, ninguém absolutamente podia realmente ouvir.

E ela, ela que nem me lembrou, mas que eu fingia esquecer depois do almoço, na minha imaginação dormia, dormia sob as águas-furtadas que incriminavam metade de mim, cujo esboço feito de esmero e efêmero era pura vodka-estraga-poemas.

E quanto mais eu me deteriorava, podia ver o mundo deteriorando-se. E o mundo deteriorava não só enquanto eu me deteriorava, mas era algo além, pois minha deterioração estava aquém, e sim eu sabia, sabia quando nos piores dias percebia, que mesmo que eu não me deteriorasse haveria algo ou alguém para se acabar no finito do mundo. Pois o mundo se acaba sem mim. E isto era uma tragédia à minha verve narcísica... Eu adorava. Adorava saber que eu acabaria, mas tudo então, permaneceria com força e vigor, e que minha potência era apenas cigarros, poemas e justos consolados.

Para manter a instituição imaginária da sociedade, eu deveria convivier bem comigo mesmo, e não deixar minhas criações subjugarem o criador. Como deus por exemplo. Criação minha, nunca conseguiu me subjugar, mas meu destino, este sim, que não estava escrito nas velhas fórmulas, fazia planos secretos naquele pedaço de mente que eu esquecia ou ignorava, e tanto fazia sob os antigos ou novos esquemas, o que era relevante era que isto implicava em manter a esperança.

Algo real e concreto começou a germinar, rompendo as cascas e forçando o solo e as desilusões à acomodarem-se sob o novo quadro: a luz, o orvalho perante às cascas, folhas, no céu da verdade empírica e esmagadora dos fatos; fatos que se faziam só, eu nascia ali, na esquina da morte, que não fazia peso, pois era parte do todo e das cinzas do novo, reciclando no final dos finais. Era a morte cotidiana.

Renascia sob o tom da dúvida; o sal e o tempero eram só meus, naquele momento íntimo do paladar, algo meu.

O mundo terminava em mim, era uma fronteira possível mas que odiava o outro em si mesmo, na água-furtada, no poema do outro que feito para mim, me escolhia sem que para isto eu tivesse esmero. Todavia guardava alguma empatia, mesmo forçosa.

E demasiadamente empática, empático, nos assemelhávamos, mesmo assim, largados na avenida ordinária do mundo. Eu via o mundo morrer, mas eu sabia que ele iria sobreviver sem mim, e que ele morria na minha presença, sob a minha vida.

[...]

(A chuva e a desgraça pareciam não incomodar o falso artista)

Aberta a janela, a das opções, o mundo falava com o quarto que a princípio era todo o mundo; tímido, mas eterno, como um universo já feito. E aí a cama, os copos vazios, os livros calados que falavam sem parar, e aqueles pequenos papéis e as pequenas coisas que eu não conseguia ordenar, já que organizar um universo clamava as esperanças, e agora eu só tinha e mantinha sonhos, sonhos que eu não lembrava.

A nota amassada, a mandala que da esperança à superstição fora justa, justa desde o início e nunca mentiu apesar de ser objeto das perguntas que não queria responder...

E eu, eu, que não me encontrava mais sujeito nas quintas-feiras, mas resolvia, implacável comigo mesmo, juntar-me com os cacos ou as sobras daquela obra, daquele sorriso que não era e nunca foi meu, daquele beijo que eu admirei sem que fosse seu alvo, daquele amor, que eu só dispunha com a obra pronta, em película de 35 mm ou que só admirava por um outro necessáriamente menos empático, menos dramático, menos infeliz. Daquele afago que eu assistia e completamente aturdido pelo amor que existia fora de minha presença, cirscunscrevia minha solidão num plano lógico de sentido.

Eu quando tocado, assim, por aquela força que também me queria, mesmo que de tão longe merecesse mais força, nós nos implacavelmente nos amávamos num futuro possível e indisposto, mal resolvido, e por isto agradável, quase terminal.

Novamente. Novamente, eu não ligava para a morte do amor, nem de mim mesmo, pois eu já estava com os pés na vida, e assim, como um outro que não deixa de cantar; sorria, sofria.

Irredutível, eu sabia, e lia, entre uma janela fechada, entre mais um copo de café, entre mais um poema longo e demasiado, que era assim, era assim na esquina da imperfeição da vida, que mais um empático, entregava-se, entregava-se e colocava à disposição o coração de avenidas de amor que ele percorreu.

E aí eu voltava, voltava à tudo... Esquentando chaleiras, preparando o café, observando sem desejar títulos eu retornava ao estado original, pois toda dor, segundo meu autor preferido...

"Toda dor retorna ao seu estado original".

E retornava, com amplitude de uma fé. Retornava, amando um futuro indisposto...

Criado. Mas entre a poesia, aquele seu estado bruto, que sempre retornava...

Ele chegava, por entre as trilhas, por entre as sendas, por entre os muros, pelo criado-mudo. Ele sempre chegava.

[...]

(Em uma semana que não resolveu sair para nada, apenas tomar café, comer, escrever, pintar)