segunda-feira, 31 de março de 2008

Felicidades

No entorno do teu corpo
Jaz um pedaço de mim
...
Enluarado sob o cadafalso
Do meu(nosso) fracasso.

As memórias que não eram dele

Rafael sofria de um mal irreparável. Memórias que não eram dele. Não eram de ninguém na verdade, apesar de alguns indivíduos se apropriarem no entanto de algumas, no desenrolar dos fatos, elas surgiam, e eram sempre de sujeito indeterminado.

A questão, e era sim, esta a grande questão, que Rafael não sabia exatamente onde começavam suas memórias e onde terminavam suas ilusões. Ninguém sabe na verdade, mas no caso específico deste jornalista desocupado, havia um quê de patológico, que transformava sonhos, alentos aleatórios, imaginações em fatos, em verdade, em história.

Não era algo tão fácil, preocupar-se com o inesperado, com o não acontecido. E a fronteira entre o real e o imaginado, era para Rafael, tão tênue quanto a espuma de uma cerveja servida num dia quente. Não saber o que era real e o que era imaginado era um delicioso jogo de armar, mas Rafael sabia, que o real era tudo o que estava dentro de seu escopo, e o que estava em seu escopo, era o que ele sim criava; era um vocacionado niilista de profissão.

Treze cervejas, mas na verdade eram doze, isto não fazia importância, não para ele, este puto cacofônico, que repetia e perseguia paroxítonas como quem come vogais de ócio seguidas de hiatos de felicidade, mas acostumara-se a duvidar de suas memórias: quatro ou cinco páginas lidas? sete ou oito estruturas verbais? Amanda ou Mônica? Catete ou Flamengo? Pós-estruturalismo ou arquitetura neo-romântica?

Depois da chuva torrencial, compreendeu que deveria partir, e foi asim que avisou, acenou, para os que o acompanhavam, que deveria misturar-se a multidão, uma multidão de vozes que calava dentro de si, para depois então prosseguir, atravessando uma avenida de mão dupla, quase-atropelado, onde às quatro da manhã encontraria em sonhos, metade dos seus amigos ou reclamando daquele fato dormindo, ou sonhando com ápices sexuais muito mal reprimidos.

A verdade, e verdade era algo tão manipulável quanto uma massinha de modelar às cinco da manhã, era que as mentiras, ou diria em tom reprovável - respostas acomodadas que tornavam-se parte do real, e ele sempre fizera questão de separar, reprimir, o real do ideal, por que supostamente isto o faria mais concreto dentro do esfarelamento crônico da modernidade.

Vendo toda a questão por um lado Vassilliano, e este lado era a aresta mais individualista que ele pudera conceber, tudo tornava-se apenas um quebra-cabeças mal encaixado, onde o azedume do respeito concentrava-se isoladamente em um feiche mal feito de poesia: TODA PARTE INTRADUZÍVEL É ALGO QUE CLAMA POR UM GRITO. UM GRITO DE VIDA, DE DOR, DE ALGO QUE NÃO SE POSSA TRADUZIR COM CINCO OU SEIS CONTOS.

Não sabia muito bem o que era sonhado, o que era realizado, e odiava boa parte dos atendentes de telemarketing, quando, exatamente desdobrava-se e neste sentid0 esforçava-se para provar esta tese, começavam a utilizar gerúndios afetivos. Pois não existe o "estamos nos amando", existe o nos amamos!

Não é possível estabelecer pontes sinceras entre o ideal e o real conquanto se busque algo que continue a saber que pode não ser real: como daquela vez em que socou um desafeto, quando na verdade, estava dormindo às seis da manhã num ponto de ônibus mal-cheiroso.

A verdade era que estava cansado.

sábado, 29 de março de 2008

Superego(s)

Meus zines (todos devidamente impressos, exceto o número 04, mal impresso)

Superego 01


Superego 02

Superego 03

Superego 04

Supernova

[ Publicado originalmente na puta que pariu, este conto foi a primeira aparição da ruiva. Estou republicando-o no original de 2004 ou antes disto(chutei a data) e é sem dúvida nenhuma um dos meus preferidos. Além disso, além disso é o caralho, a questão, é que, este conto FOI O PROPULSOR DE TUDO O QUE ESTÁ ESCRITO AQUI. FOI ELE QUE ME INCENTIVOU A ESCREVER. NOTE, A IMPORTÂNCIA.]

Esperando telefonemas que não chegariam.

Lembrando de poemas que eu nunca recitaria.Foi então que eu olhei para mim e analisei minha antipatia exterior.

Eu gosto de filosofia marginal eu disse...

E daí?! ela respondeu.

Depois do terceiro copo de vinho eu subi as escadas do salão de sinuca, ela me seguiu. Segurei com uma das mãos o copo descartável com vinho barato e com a outra me apoiei em uma das mesas vazias. Ela olhou em meus olhos e disse que eu era um verdadeiro porra-louca. Olhei para o chão nesse momento, tomei coragem, a fitei durante alguns segundos e engoli o restante da bebida sem ao menos respirar.

Deixei o copo vazio cair sobre o carpete verde, da mesa de sinuca e soltei uma frase escrota do Nietschze: o que não nos mata nos torna mais fortes, afirmei. Ela riu. Um sorriso irônico, forçado, uma atriz, era o que ela era. Colocou uma das mãos sobre o rosto, apertou em sinal de tédio ou cansaço e apontou para um conjunto de bolas que estavam jogadas aleatóriamente pela mesa: Você sabe o que é isso? É um jogo. A vida é uma porra de um jogo. Mesmo você com toda a sua ideologia pretensamente esclarecida, deve admitir que não pode vencer todas. Que você pode se dar bem e se ferrar a qualquer momento. Mas mesmo que perca ou ganhe você deve dar a sua melhor tacada. Só que você com todo esse sentimentozinho escroto de individualidade retorcida só consegue soltar esses espasmozinhos filosóficos baratos para tentar me conquistar.

Eu mantive-me firme. As lágrimas atreveram-se a brotar no canto dos meus olhos, mas consegui segurá-las com uma olhadela rápida à única janela de alumínio do lugar. Vi pessoas se divertindo, vi homenszinhos vestidos de preto, mulheres fantasiadas para matar, para morrer, enfim, toda aquela baboseira de rebeldia sem confronto, sem dor, sem "causa". Mas eu tenho um motivo; enraiveci-me.

Seus motivos não são seus objetivos, eles são apenas motivos. Paradigmas. Você é um desgraçado de um paradigma. você odeia os paradigmas. Mas você é um deles cara. Você é um deles e não afirma isso sem meia dúzia de palavrões "teorizados" ela disse.

Dobrei os punhos, me apoiei sobre a mesa, peguei a garrafa com violência e comecei a beber.

(ela continuou) Você continua preso aos seus estereótipos, a sua filosofiazinha idiota, a sua vontade inepta de continuar buscando, buscando e buscando a perfeição em forma de versos, textos e desafios emocionais!

Eu somente bebia. Virei a garrafa com vigor.

Você ainda é um filho da puta especial porque continua a assumir esses rótulos escrotos sacou?

Você continua a afastar as pessoas porque não conseguiu se aproximar delas de forma mais sincera!

Você busca padrões em tudo o que procura! Você não quer ou nunca quis originalidade, você quer seguidores, encostos, muletas emocionais para sua personalidade fértil! Um estampido.

Arremessei a garrafa em uma das paredes. Olhei para aqueles olhos azuis (os meus já em lágrimas) soluçando e gritei: Você não pode me entender!! Você nunca pôde e nunca vai poder! Porque você nunca me conheceu o suficiente para ter noção da dor que eu sinto. Da vergonha que eu tenho em nunca parecer sincero, em nunca agradar o suficiente ou mostrar para o mundo o que eu sinto. Eu...eu... tentei tocar músicas, fazer músicas, para ser compreendido, eu..eu... escrevi textos, mas eu
falhei, merda, eu falhei. Ela afastou-se. Deu dois passos para trás. Ajeitou aqueles lindos cabelos vermelhos, deus, só eu sei o quanto eram lindos, para trás das orelhas e começou a chorar também: Eu estou disposta a te ajudar. Eu estou disposta a compartilhar dessa alegria de viver e dessa dor contigo, mas eu não posso ficar a mercê da sua instabilidade, do seu temperamento inconstante entendeu?

Fiquei mudo, ajoelhei e chorei mais ainda.Eu posso ficar do seu lado ela falou. Mas eu não quero...
Eu não quero ver você assim. Você vai ter que reagir. Eu nunca vou lhe cobrar um amor eterno porque sei que você me amará do jeito que eu sou. Mas eu não posso ver você assim! Ela ajoelhou-se em prantos.

Foi então que nos beijamos ao som de um bonito solo de sax de um velho e decadente músico que tocava solitáriamente na esquina mais próxima. Eu estava feliz por tudo o que ela tinha me dito. Foi aí que tudo começou: eu acordei. Sozinho... Mas acordei feliz.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Origami Emocional

Dobrei-me...
Como um origami emocional
Criei camadas de vida
Voei, espalhado pelo vento
Como um barco sem horizonte
Despedacei-me no mar
E vi que a felicidade
Estava na minha mão

A alegria era uma folha de papel
Eu a dobrei como um envelope
E coloquei recortes de revista
E dúvidas de jantar em seu interior

Comi desatinos e engoli timoneiros
Sem pensar, sem sonhar
Que a água que eu outrora bebi
Iria dessa vez, me afogar

Liguei o rádio
Mas não havia estação
Olhei para o sol
E ainda era verão

Gritei ao som do enfado
E não entendia...

Por que naquela maldita quinta feira
O meu olfato sentia cheiro de morte

Dancei, dancei, dancei ao som da música
Sem saber, que não se baila
Com um caixão em uma das mãos

Olhei para o horizonte
A vida era algo normal
E o meu normal, não dizia nada
Para seis bilhões de pessoas

Bebi cervejas no escuro
E achei que iria me curar
De algo que nunca tive

Costurei falsos caminhos
E só percebi
Que no palco do teatro
O ator sim, o ator era vossa senhoria
Vossa senhoria! O eu!

terça-feira, 25 de março de 2008

Não há mais mangas no quintal

"O homem é a natureza tomando consciência de si própria. " (Elisée Reclús)

Meu quarto fica no final da casa. É um quarto quente e um pouco abafado, estreito, com raios solares que não o esquecem durante todo o dia. Atrás do meu quarto, há um gramado simpático.
E neste gramado, há uma mangueira. É uma mangueira deveras libertária, ela nunca respeitou a ficção da propriedade privada; parte de sua frondosa copa avançara impiedosamente sobre o terreno da casa onde moro, alguns galhos atrevidos na verdade, galhos que quase tocam o chão, onde podíamos tocar as mangas com os dedos das mãos preenchiam parte da parede que segue cartesianamente até o final da casa. A casa termina, a mangueira não.

Seu caule está prostado no terreno do vizinho, ele faz o que quiser com a mangueira; se quisesse matá-la poderia ter feito, mas por bondade ou preguiça, ela ainda vive, e eu sou de certa forma grato por isto.

Haviam mangas espalhadas no quintal, muitas. Mas para dizer a verdade, eu nunca experimentei nenhuma delas.

Sempre que um vento do norte atingia o terreno, as mangas despencavam. Mangas suicidas. Eram tantas, que enchíamos baldes, galões de manga e só eu sei o que eu sofri para catar todas as últimas que caíram.

No início não incomodava muito. Eram só frutas. Mas aí começaram a cair os galhos e as folhas. E caíam exponencialmente.

Incomodado fiquei realmente, quando encontrei suco de manga na geladeira. Mas não era da mangueira. Não daquela, talvez de uma prima distante. O suco estava numa embalagem industrial; aquilo era uma contradição explícita, a mangueira tinha razão, eu não tinha a mínima consciência ambiental.

Minha mãe também não. E mandou podar a mangueira.

No início achei razoável. Cortar umas arestas sobrando daria vida nova à mangueira, quisera eu poder fazer o mesmo. Mas no dia da poda eu me entristeci, pois percebi que estavam cortando além da conta. E a conta era do tamanho do horizonte da minha janela.

Deitado na cama, eu conseguia enxergar a mangueira e uma outra árvore, cujos limitados conhecimentos arbóreos não conseguem nomear, mas posso dizer que é uma árvore mais disciplinada, cresce e conforma-se perpendicularmente ao solo, seus galhos são curtos, seu caule é longo e ela não atrapalha a disposição matemática daquele jardim, construído, diga-se de passagem.

A mangueira tapava todo o horizonte, e ninguém consegue construir horizontes com facilidade, contudo após a poda o horizonte que ela tentara esconder, revelou-se de imediato, tomada por um golpe de mágica. A tristeza da poda, e como foi triste ver seus galhos serem levados abruptamente, deu lugar a uma observação detalhada, um compasso delicado sobre a natureza; uma verdadeira e detalhada observação do fluxo natural das coisas.

Não existia grama embaixo dos galhos da mangueira pois o sol não chegava ali.

Não existia horizonte nos meus olhos antes da poda; eu só enxergava os galhos e o verde da mangueira, este era meu horizonte, enquadrado por uma janela e perseguido por uma mangueira. Mais do novo horizonte, surgiu a vida, lentamente construíndo-se em torno de metáforas e de natureza.

Mas antes de continuar a falar sobre a mangueira, eu preciso falar daquela árvore que eu desconheço o nome e está plantada mais próximo a minha janela. Em um dia de insônia o vento a balançava suavamente. A árvore não lutava contra o vento, assim como o leito do rio não luta contra as pedras que o cortam. Outro dia, percebi a árvore parada. Não ventava e ela não se mexia.

ELA NÃO NEGAVA SUA PRÓPRIA NATUREZA.

Voltando a mangueira, a grama comecou a crescer, o horizonte se ampliou. Não lamento muito mais por ela. Por que agora posso enxergar o céu como jamais pude da janela do meu quarto. E quando o céu está chuvoso, e eu adoro os dias chuvosos, levanto-me da cadeira, paro de escrever, debruço-me por sobre a janela e olho para aquele horizonte cinza, e cinza não é uma palavra adequada e nenhuma é, para traduzir o que é este horizonte nesses dias.

E eu não consigo escrever quando isto ocorre.

Por que seria mesquinho demais falar de mim, somente de mim, quando me sinto completo e perdido na imensidão do todo.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Condição de Classe

Olhava para o ponto de ônibus com irritação. As pessoas se espremiam como peças certas de um quebra-cabeças mal feito, e quando o ônibus aproximava-se, havia um mover contínuo e frenético; quase uma explicação prática sobre a teoria do caos, algo como a aleatoriedade das partículas e das gotas de chuva que caíam sob os pará-brisas; Luciano comparava aquele ritual, a um embaralhar de cartas. Todas de um mesmo baralho.

A ansiedade percorria suas veias, sempre que o coletivo se aproximava, parecia no entanto que o tempo esticava, aumentando exponencialmente este seu sentimento agudo, a ponto do desejo intenso de ir embora, sair dali, fugir daquela fumaça, do ponto cheio, da urbe calorenta e do pouco espaço vital que tinha naquele momento, alimentar uma misantropia que em outros momentos de lucidez lhe seria extremamente condenável.

O sol escaldante agredia sua fronte, a fumaça negra dos coletivos, uma afronta aberta à gaia, a si próprio e aos que estavam ali, deixava claro a condição de classe a que fora submetido. Não era tão óbvio como parecia ser, Luciano, podia para alguns ser um mero produto da indigna ascensão social pequeno-burguesa, de classe C3 a C2(lera numa revista respeitada num consultório dentário, as novas e recentes classificações de classe, doze, segundo a renomada revista), fato irrisível que não assumia para si.

O terceiro coletivo, amarelo, cortando seus pensamentos e uma kombi que realizava transporte ilegal(ou seja, aquilo que o estado não ganha dinheiro - pensou) despertou uma satisfação momentânea: "quero fugir deste lugar".

Esbarrou em uma ou duas pessoas, mas não havia tempo para educação ou idealismos, a realidade e o ônibus amarelo - naquele momento um verdadeiro Hegel da filosofia, lhe impunham uma outra dinâmica. A subida no coletivo começou a lhe impigir outros desafios existenciais, dilemas filosóficos; deixar a srta. de vestido verde ultrapassar sua frente seria um ato de educação ou de comiserabilidade? Lembrou mais do "torna-te o que tu és" da aula de filosofia ocidental, e resolveu não promover nenhum sentimento de desigualdade, deixando a morena de olhos claros a ver coletivos(na verdade seu atual estado civil era o desinteresse - e isto teria de ficar claro após duas ou três olhadelas).

Rodou a catraca do ônibus, sentia-se meio homem, meio gado, posicionou-se no banco mais alto, mas no fundo estava na mesma posição, uma posição de classe.

O monstro de metal avançou, o cobrador visívelmente entediado, batia insistentemente a moeda em um dos ferros de alumínio da condução, sua expressão transpirava desistência acumulada e o tintilar emudeceu diante do motor agressivo do ônibus. O vazio do coletivo, começava a dar lugar a uma sequência de expressões corporais, gestos e fisionomias, que ocupavam espaços, clamavam o mínimo de dignidade conquanto não demonstrassem tão abertamente.

A quimera avançava, a paisagem retorcida, inundada de cimento e concreto, sufocava os pensamentos, alimentava a desilusão e disseminava um sentimento de desconfiança, um afastamento progressivo, que vez ou outra era vencido por uma atitude mais cordial, como o de pegar moedas caídas.

A velocidade aumentava, a paisagem também, a cada ponto, a cada parada, o moinho de metal engolia mais incautos: um bom almoço a serviço do capital. Cinco ou seis passageiros se acotovelavam num espaço que cabiam dois ou três, o barulho da catraca, da roleta ritmava a respiração do monstro motorizado moderno,(o trajeto ainda não tinha se fragmentado em "múltiplas" identidades a ponto de tornar-se tão pós-moderno) enquanto Luciano perdia-se em seus próprios e ocultos pensamentos, sua indignação por estar ali, espremido como todos os demais era tão nítida, quanto aquele trânsito incongruente.

Estava abafado.

Observou um caminhão de carga, preenchido por batatas, - No fundo, dentro desta lógica, é o que somos para eles(referia-se aos donos do poder, aos donos do capital): Meras batatas. Mercadorias.

Transitando frenéticamente em torno de um circuito construído, trabalho x bairro dormitório, bairro dormitório x trabalho, Luciano entristecia-se com o holocausto(como pseudo-poeta tinha a licença para promover apropriações) social que se avolumava, não conseguia manter a calma dos cínicos diante a miséria; a cada pedido de esmola, a cada notícia de jornal, a cada degradação calculada, Luciano enchia-se de indignação... Encher os pulmões de utopia era o que lhe restava, não aceitava ser conformado nas linhas de produção do capital. Jamais! Guerra ou morte!

Alinhar-se com o inimigo nunca! Iria até o último suspiro de força se for preciso!

É preciso saber a condição de classe! - gritou para todo o ônibus.

Como um imã, os olhares foram lançados até o fundo do ônibus, a viagem emudeceu. O arranque do motor descongelou a situação.

Por fim o trânsito de batatas, de pessoas prosseguiu em seu interminável objetivo, a fornalha do capital estava sedenta, era preciso alimentá-la com mais um coletivo repleto de desejos, mas se dependesse de Luciano e da rebeldia coletiva, que mesmo sufocada por entre os dentes, estava lá, no fundo dos olhos de cada passageiro, teria uma bela indigestão.

domingo, 16 de março de 2008

Chovia quando ficava triste

Choveu. E então o céu lacrimejou suavemente, como se aguardasse um afago.

O afeto de Vasilli estava espalhado por sobre a mesa, davam o nome de Vodka, e estava distribuída por uma dose de limão, acúcar e gelo. Jazia também, uma caneta por cima da mesa, próximo ao cinzeiro, repleto de guimbas do passado, dor nostálgicamente posicionada por cima do seu horizonte de dúvida.

Não havia muito a fazer, a não ser observar os pingos da chuva rabiscarem o céu, a varanda, e seu coração, aguardando que em determinado e específico momento não combinado entre os dois(ele e o céu) algum dos dois teria de parar de lacrimejar.

O céu era forte, amplo, mais Vasilli muito mais infinito, rabiscou o papel a procura de inspiração, ou melhor calma, para expressar o que ele sabia bem que somente o fundo de seus olhos poderia dizer; olhando para os lados, mexendo os dedos por entre o cabelo desgrenhado, abaixando-os a altura dos pés, movia seu pensamento de um lado a outro sem encontrar respostas, mesmo com aquela música de jazz que ouvira semana passada e não conseguia esquecer.

"Procurar não traz a paz. A paz só vem quando a gente esquece. " Filosofou em tom de cinismo, cinismo consigo mesmo, por que naquela casa mal conseguia se carregar, quanto mais conviver com os demais.

A vodka aqueceu a garganta, mas não os paralelepípedos molhados da rua, pouco limão, pouco limão... Levantou, deixou o copo em cima da mesa, debruçou-se na varanda, mover o corpo não era uma estratégia, era uma instinto básico de sobrevivência, o olhar girou seu corpo e olhar em direção ao final da rua, vez ou outra, captava algo. Sensação estranha aquela.

Está no ar. Veja bem. A angústia está no ar... e eu aqui, a captando. O céu está triste, encerrou, como estivesse provando a si mesmo que o motivo daquela tristeza era apenas a de efeitos colaterais que o levavam a desenvolver algo brilhante... uma vida brilhante.... uma idéia brilhante... uma filosofia de botequim brilhante... ou até mesmo uma frase, ou uma poesia brilhante...

Este ledo engano, era teleológico por demais, e ele acabava perdendo partes das esperanças que simularara para si e retornava ao ponto original como num dificultoso jogo de armar castelos de cartas ou de areia... Desistia de enxergar a tristeza com tanto otimismo, na segunda ou na terceira dose de saudade ou de medo.

Voltou a mesa, mexeu no cigarro, como aguardando um reflexo, algo que se movesse, que o tirasse da habitual tristeza. Mas não... ele bem sabia... por quanto sempre estalava nessas horas uma parte de si deixada à própria sorte, que decidia por fim reagir, mesmo que devidamente reduzida de suas forças na tentativa de o animar....

Havia um quê de secreto, naquele pacto silencioso entre Vasilli e o sagrado(considerava aquele ritual sagrado, um sagrado não sacralizado, um sagrado não-divino, um sagrado que agradava por fim, os ateus), entre suas lágrimas e a chuva, entre seu destino e seus passos...

Fingia otimismo quando lhe interessava e o contrário era mais habitual, era verdade, vez ou outra não fingia nada, era sincero, depreendia daí o problema e a incapacidade objetiva de o ajudarem.

Poucos poderiam, já não acreditava em nenhuma ajuda que não cobrasse noventa reais a consulta, afinal desconfiava de boa parte do altruísmo que aguardava cinco minutos a sua vez de falar, que não descortinava a tristeza alheia, que não remoía no fundo o que verdadeiramente se escondia naquelas frases, sim, pois é ali, é mais na parte sul do abismo interior, revelado por cinco ou seis olhares, por dois ou três atos falhos, que Vasilli se escondia, e como todo mal cristão, a introversão fazia parte do pacote.

Não se escondia tão fundo assim, bastava coragem, sensibilidade ou intuição(ou um misto das três), para descobrirem em que parte do penhasco se encontrava, mas tal tarefa, não cabia à desajeitados/as ou a covardes. Ninguém olha espelhos para negar o que sabe, mas sim o inverso.

Começava assim a treinar, a adaptar-se ao kung fu emocional, fundar seu jogo de xadrez fora do instinto, dentro do real e começou a temer, na segunda ou na terceira golada daquele resto de limão com tristeza, a profundidade do abismo em que se jogara.

A grande questão era saber se seria resgatado; ou se queria mesmo.

terça-feira, 11 de março de 2008

Nem tão mal assim, nem tão bem o suficiente

Ruiva, sabe exatamente como o corpo reage a angústia? Já sentiu os olhos úmidos de lágrimas, e a garganta engolir aquela decepção embalada antes do café-da-manhã ruiva?

Meus passos longos precipitaram uma imensidão de cores, cores que eu não consegui filtrar(e quem disse que eu deveria?); ela apenas racionalizou o mundo a nossa volta Ruiva, ela matou o dionisíaco que nos temperava, ela pragmatizou a realidade ao nosso redor.

Faltou-lhe coragem? Coragem esta que me sobrava... Mas eu Ruiva, este tonto Vasilli, enebriado pelo desejo de re-construção dos cotidianos, não conseguiu compreender que isto apenas dizia respeito ao poder de decisão dela Ruiva, e não do meu, de convencimento(e eu repito isso para me convencer... para me convencer racionalmente, mas emocionalmente nunca me convenci).

E cá estou eu, cercado de guimbas de cigarro, fuçando livros no centro da cidade na terceira quarta-feira do mês, comendo uma esfiha com gosto de saudade Ruiva, e secando lágrimas que eu nunca despejei na verdade, metaforizando tudo ao meu redor, tudo, por que assim, o mundinho cinza dessa urbe impiedosa ganha mais vida.

Já não estou nas suas fotos, sei disto Ruiva, ela me apagou de todas as suas fotos e suas recordações, as minhas frases de efeito e meus ditados clichês, ecoam por cinco ou seis amores esquecidos, por que idéias não morrem Ruiva, idéias são a prova de balas, e no fundo no fundo é assim que me sinto, uma grande idéia presa num corpo humano, demasiadamente humano; e talvez seja esta minha função no mundo Ruiva, fazer parte de momentos longos(para muitos, e curtos para mim) onde eu tenha me transmutado não em corpo, mas em espírito.

Exercitei a imaginação alheia demasiadamente, e em troca, (dentro desse olhar egoísta inconsciente) apenas recebi letras ruiva, letras que eu já tinha de sobra.

Anatole, fora de sua habitual inabilidade para com piadas, conseguiu fugir do padrão esses dias, e disse algo que realmente me interessou(a posteriori - é claro, eu não daria este gostinho ao puto):

"Precisamos de uma novo tipo de tuberculose que só consiga matar os poetas."

Nato está certo, não há mais glamour(se é que houve algum dia), mistério ou mágica em trocar emoções por letras, isto já foi intensamente exercitado e minha verdadeira profissão de fé é me iluminar diante o esquecimento. Nossa miséria é tão escassa ruiva, que me envergonho de despejar esta parte de mim, não é justo dar aos outros uma metade de você que eles acham ser a inteira, a impressão normalmente é que se costuma vender algo, por um preço muito mais alto do que podem pagar.

Ruiva, quando olhei para tuas fotos, me lembrei o quão inadaptado eu me sentia ao lado de determinados grupos, e eram poucos, muito poucos, os que eu não tinha de me esforçar para vestir aquelas personas descartáveis irritantes, mas isto é um fato tão coerente e corrente que no final das contas, me achava mais e tão verdadeiro quanto possível.

O daqui pra frente é uma estrada deliciosa Ruiva, este paradoxo ambulante de nome Vasilli, no fim das contas concorda que a tristeza é o verso da alegria, não sabe bem como autogerir isto a ponto de equilibrar-se sem muletas, mas está no caminho... Irrito-me com a necessidade mórbida de imporem a ditadura da felicidade, isto é triste demais ruiva... gente sem verso é apenas um simulacro de ser humano...

Isto é tudo Ruiva, mandarei outras cartas depois, pois já não tenho mais para quem enviá-las, me sinto meio Anatole agora Ruiva, distribuindo metades de si para muitos(quando sabemos que ele é inteiro, não metade) aguardando compaixão, mas não há compaixão suficiente, nunca há, e depender desta caridade emocional definitivamente não diz respeito aos espíritos livres(e quem disse que eu quero ser? deixe o ubermensch para as próximas gerações...).

Agora me vou, esgueirar por entre o cotidiano, apesar de continuar a me sentir sozinho, ainda posso olhar ao lado e ver muita gente ao meu redor.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Disputas Interiores: Durden ou Poulain?


Olhando para tudo o que aconteceu, tinha quase certeza de que o caminho, sim, pois era seu sem dúvida, era um caminho pra lá de interessante. A maneira com que recriava a vida ao seu redor, era em suma, parte de um processo global, isto é verdade, e acreditava e confiava nas redes que o envolviam, e tudo, tudo, dizia lembrando daquela terça-feira mágica, era parte daquela trilha, daquela estrada, deste caminho, ríspido, suave, intenso, jocoso, brilhante.

Poderia encher o copo da vida uma ou duas vezes, antes de experimentar a dor, e o que era a alegria sem a dor, o que era a paixão sem o ódio, o que era o dualismo sem o relativismo, o que era ele próprio sem si mesmo!!! Confiar no sagrado era o início de um processo curto de esperança. Era um feixe de respiração otimista.

Fazendo um balanço sincero e motivado de seus/meus próprios costumes lembrava demasiadamente das músicas tristes, das cartas sinceras, das lágrimas despejadas sob o copo de cerveja preta, que ele, sim, ele tanto adorava. Era um romântico incurável, e românticos incuráveis, necessitam de mais tempo, nenhum tempo é tão escasso, quanto o tempo dos românticos incuráveis. Ele sabia, e demonstrava a cada gesto, que era uma junção de simplicidade explorada demasiadamente pelo destino a ponto de exaurir seu próprio otimismo; e no entanto conseguia a cada respiração, ser visitado pela morte sete vezes, assim como os budistas; e que deus os tenha.

Mas lhe faltava maldade. Não se referia ao mal convencional dos filmes hollywoodianos ou das igrejas de final de semana; faltava-lhe, e podia perceber a cada evento, uma percepção mais nítida, e a este ponto preferia a palavra parceria como o oposto do que ele era e negava.

Era claro e necessário, que ele deveria fortalecer aquele lado escuro, que tanto deixara-se ofuscar por sua parte mais criativa e dera a uma ampla gama de jogadoras, a oportunidade de deliciarem-se com modelos paranóides produzidos sob situações de tensão; ou diria melhor, bonequinhos perfeitos, imagens projetadas no espírito do tempo a partir de espasmos pré-românticos, mas veja bem, e preste atenção neste período, neste momento, tão particular e talvez inovador... espasmos pré-românticos são como comportamentos clichês às sete da manhã.

"Passe-me a manteiga por favor! (me passa a porra da manteiga!!!)."

O espírito do tempo não estava com ele desta vez(nunca esteve). Adaptaria-se?

Adorava utilizar opostos para explicitar a si próprio; água x fogo, yin x yang, sombra x luz e como a modernidade lhe impunha novas e sensacionalistas abordagens, Anatole resolvera escolher a dicotomia durden x poulain, que era um produto de filmes baratos que resolvera rever para explicar a si mesmo e aos leitores(dois ou três - num dia de sorte) o que era dicotômico em sua, em nossa, personalidade. (se você chegou até aqui parabéns! força! continue!)

Oposições que se completavam, mas que neste momento digladiavam-se em torno de uma resposta. Ele vai ter de escolher - diziam nos corredores do inconsciente.

Conseguiria trazer sua sombra?, sim ela dizia faminta - você consegue meu jovem, enquanto jovem; conseguirá empurrar mais para o fundo esta velha, sim, pois anime-se os anos 90 já acabaram junto com suas camisas de flanela, esta velha-idosa Poulain, espírito ultrapassado e prestes a reanimar o velho Durden, este arquétipo raivoso, esta parte de si que calava todas as vezes em que se confrontava com a doçura de uma parte de si que predominara durante todo o jogo; deixe ele tomar as rédeas da situação, deixe o velho durden dominar.

É claro que isso tinha um custo. Ele sabia, e dialogava muito oportunamente com os dois, com meio cigarro na boca, e um copo de cerveja preta, olhando para o horizonte(e seu horizonte era bem limitado por cinco ou seis prédios - isto dependia da quantidade de vodka) que tal tarefa não era tão fácil como poderia aparentar.

Sabia exatamente, que um estava em posição mais vantajosa do que os demais; Vasilli não admitia a princípio, mas as queimaduras de cigarro de quatro ou cinco anos arriscavam palpites de quem ganharia naquele momento o jogo, e isto era suficientemente claro para demonstrar que era hora de cultivar um caos dentro de si, não uma estrela brilhante, mas uma super-nova que talvez conseguiria gerir algo novo... de uma vez por todas.

Matar Poulain, enterrar Durden, talvez seja o caminho.... Ele não sabia exatamente...

Talvez devesse seguir o fluxo, parece fácil quando não se escreve por compulsão. Nada constava como editável, aproveitável; o lixo literário estava aí. O excesso de cerveja preta denunciava que seria mais durden do que poulain e não, ele não aceitava conselhos, por que esta mudança era temporária como toda mudança (normalmente) é. Decerto a maioria inspirava-se e acostumara-se a conviver mais com Vassili em sua fase "Poulain", fazia sentido, já que o espírito do tempo abortava milhares, milhões de Amélies Poulains sistemáticamente...

E a gente costuma projetar no outro o que a gente quer ser. E assim fica fácil pedir para Vasilli ser mais Poulain. Quando o que ele quer. É ser mais sombra, é ser mais durden.

[sorriso da ruiva no canto da sala - cigarro na boca, fumaça no ar, ele dormindo, ela acordada, vestindo preto, sofá sujo, gato preto na casa, lixo no quarto.]

Abandone a meditação, siga o caminho




Reconstruindo meus silêncios. Caminhando... como um gaijin deslocado do tempo, não do espaço.

Olhando meus abismos. Talvez não sejam tão fundos. Verei ao caminhar...

Meditando; há uma rocha, estou no alto, estou perto do abismo, da ribanceira, mas não a temo.

É mentira. Eu abro os olhos. O vazio está mais próximo. Eu levanto, abandono a meditação. Talvez caminhe mais um pouco.

Talvez caminhar naquele plateau seja mais seguro. Talvez. Eu pego minha mochila. Pego em meu bolso uma velha foto. A foto ainda não está desfocada. Nítida demais.

Eu pego minha mochila, eu me lembro de tudo. De tudo. Ainda.

Vou meditar naquele plateau. Será mais seguro, daqui para frente, será muito mais seguro.