Dizem que a esperança é a última que morre. Mas ninguém disse que ela é imortal. Um dia ela morre. Demora a morrer, mas morre. Vai morrendo a míngua, ou súbitamente estraçalhada pelos fatos. Sim, pelos fatos. A vontade move muita coisa, mas a vontade também esbarra no outro, na outra, no alheio; no que não é nosso(e nada, escute bem, nada é nosso além do próprio corpo e das próprias palavras - pois a propriedade como diria Proudhon é um roubo). Mas a esperança é uma fênix. A esperança não desiste. Por que o novo sempre brota das cinzas do velho.
No final das contas esse é o limite. O limite que é criado pela liberdade do indivíduo.
O sofrimento é inevitável, Anatole acreditava nisto, concordava neste ponto com os zen-budistas, os que vendiam incenso na esquina daquele mercadinho simpático onde comprava arruda e feijão, todavia esperava um pouco mais de misericórdia do destino. Palavras tinham poder e se são as armas que matam o corpo, são as palavras que chacinam o espírito. Na verdade é a incongruência entre ação e palavra que o irritava(mas todo mundo agia assim - havia um quê de perdão intríseco nas palavras). Preferia o não sincero, do que o sim hipócrita.
Construir tronos de pedra sob paredes de vidro não era lá um hobbie agradável.
Já não sabia mais quais eram realmente seus limites, isto por que as situações forçavam e tensionavam-os até um ponto insuportável. Sua mente era um campo de batalha. Seu corpo, uma armadilha. Um campo minado.
Sofrer é inevitável, dizia com os zen-budistas entre os dentes, cheirando molho de macarrão vegetariano, escutando Charles Mingus, mexendo a colher de pau suja de molho de tomate que parecia sangue e deixando a vida, e o cabelo crescerem diante de seus olhos... Mas ainda assim, percebia, e tinha realmente esta capacidade, de fazer do trivial um pedaço de luz, uma inspiração, percebia que apesar do otimismo que floreava em sua volta, ele daria mais algumas voltas para repensar o que achava que era meramente essencial(vindo da essência queria dizer).
Quase agradecia, mas não agradecia conquanto, portasse dentro de si uma tranquilidade que permitia a si mesmo, encontrar-se com o divino; não o divino do metafísico cristão, mas o divino do meta-physis grego, o divino era o tao, o divino era o encontro das redes, das conjecturas, dos paradoxos que se digladiavam por vitória e ainda assim se encontravam paralelamente no infinito.
Chamava este infinito de dor.
Dor.
O que era falso...
Nenhuma dor é infinita, portanto que se percebam as incongruências de Anatole. Ele era incongruente. Dizia odiar água gelada, mas abria exceções, dizia não comer palmitos; mas deliciara-se com as exceções num almoço pseudo-vegetariano. Anatole não era própriamente uma farsa, vide os seus atos demonstrarem que normalmente(e ele não sabia o que era normal - e o normal ele afirmava: "era o que você não é quando está com a auto-estima baixa, e o que você é quando está fudido com uma garrafa de vodka Bakunin entre os braços") era um bom sujeito; sim, um bom sujeito.
Não sabia exatamente, e foi descobrir isso, na terceira garfada daquele macarrão políticamente correto, por que abandonara a filosofia de botequim e começara a se concentrar na terapia, duas, três, quatro vezes por semana que se inscrevera num ano bissexto repleto de felicidade, de alegria e de decepção.
A memória voava e ele deveria registrar esse dia, por que dias específicos devem ser registrados. E ele conseguira se vencer. Parou. Conseguiu freiar seu ímpeto em dois ou três dias, e isto era um sinal de juventude ou de amadurecimento.
Anatole, subira a passarela, andara de metrô, vestira uma camisa branca, esbarrara em um, ou dois transeuntes... Lembrara dentro do metrô, quanto tempo leva-se a escrever uma carta de amor, e se isto, se este gesto, se este ato não conseguisse emocionar(palavra jargão - mas que podia ser livremente utilizada pelo seu espírito livre) ou tocar duas ou três pessoas, prefereria encerrar sua história por aqui(estória).
Não tinha muito a escrever, já tinha cozinhado parte de suas decepções junto com aquele macarrão simplório que insistia em sofisticar parte de sua vida, de sua dor, quando Vasilli, chegou...
- Animação meu amigo. Trouxe metade de uma vodka, trouxe chimarrão para amanhã, depois da ressaca... e adivinhe? Trouxe um livro de poesias!
- Imagino que o livro não seja seu, decerto...
- Não. É nosso.
Disse Vasilli, com força, com raiva, repousando a garrafa bruscamente na mesa de vidro. Não era Vodka, era licor de menta. Por detrás da satisfação de Anatole, havia uma caixa de cervejas geladas, repousada próximo a porta daquele apartamento cansativo. Limpo, o que cansava Vasilli. Sofás de couro sintético, quadros de pintores, filósofos e outros pulhas que Vasilli costumava esbanjar ou ridicularizar em público nas sextas-feiras... E ainda assim, Anatole, mesmo no pior de seus momento, conseguia pormenorizar sua dor.
Nato! - gritou Vasilli. Você precisa de uma boa dose de futuro. Passado já há demais.
O telefone tocou, interrompendo os dois, faces distintas de um vazio futuro. E sim, o vazio podia ser o futuro e o futuro podia ser o vazio.
Vasilli...
- Diga Nato. Respondeu Vasilli com uma tragada corajosa.
Quando a ruiva vem?
Ela não vem Nato.
A ruiva morreu?
- Morreu porra. Morreu junto com uma parte boa da gente.
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