sábado, 22 de novembro de 2008

Quando amava...

Caso amasse e amassasse a folha num surto impetuoso de vergonha, ainda um quase-bobo, recostado sem pressa no banco da praça, dispensaria as flores, e retomaria a escrita sem desistir, pois da janela e do ridículo só lhe cabiam eram poemas.

Enfiaria-se nos sebos da cidade, atrás do Neruda, um Neruda só para ela. Aquele de capa azul e de beijo de língua quando dado. Um Neruda com um tesão guardado na página dezessete, um Neruda com um sexo apressado, num quarto vazio, num vazio paulista, espreitado pelos possíveis voyeurs, um Neruda demasiadamente idealizado diga-se de passagem.

Mas convenhamos; o melhor Neruda que ele já leu.

Em dias de calor passearia pelo seu corpo com uma pedra de gelo, beijaria-a na nuca e por todo o corpo deslizaria sua volúpia já verão e tardia diante da primavera perdida. Apaixonariam-se, mútuamente, não só.

Ele pintaria; e pinta mal, mas dos elogios dela não escaparia. Pois não se escapa do amor, pois o amor mata e morre impiedosamente, e a neutralidade no amor é uma quimera feia, incapacitada e que não existe de verdade.

Ele pintaria o quarto todo, antes do aniversário dela, das trocas de anos, pintaria e mandaria cartões cuidadosamente recortados por ele, um tanto sem didática, mas convidaria-a a bailar entre os corações tortos que ele, o torto, resolveu desenhar e recortar, num sábado a noite sozinho, pensando e recortando ela própria, com a cartolina vermelha nas mãos e em seu coração.

Faria brigadeiro no sábado frio e ele nem gosta tanto de brigadeiro. Mas o roçar de corpos, o sorriso no apartamento do Catete e o próprio ritual despretensioso de caminharem juntos dentro do supermercado, um ritual inútil para as rotinas mas não para o amor, lhe convenciam que o brigadeiro era sim a melhor sobremesa do bairro, do estado, e do mundo.

Escreveria cartas, e com esmero, tentaria sempre surpreendê-la, por que é deste jeito que este homem funciona, é deste jeito que caminha sem olhar para as tragédias alheias sem desanimar, é deste jeito que ele produz sorrisos às duas, às três e às onze e cinquenta da manhã; quando ela acorda e se ajeita por entre seus cabelos negros, quando ela se ajeita e mordisca-o, e ele provocado, acaba atacando-a com declarações de amor em forma de cócegas.

Ele esquivaria-se, e brincariam como duas crianças, antes do sexo, antes de cochilarem ao som daquela música francesa e antes de brigarem como duas crianças, apenas para saborearem o tempero da divergência e do ciúme, tolo ciúme.

Ele lembraria dela, uma, duas ou três vezes no instante decalcado do tempo, e no banho quando esquecesse, ela perguntaria o porquê daquele olhar tão distante, que distante dela apenas buscou em si mesmo uma outra forma mais criativa de agradá-la, e por fim de criar e recriá-la através de um sorriso lindo: era aí, exatamente neste ponto, que os dois se abraçariam por sob as gotas de água e fariam poesia apenas com os corpos.

E quando cansassem, apenas esgotariam suas próprias liberdades, apenas as esgotariam, e quando voltassem cheios de si próprios, beijariam os lábios, e caminhariam por entre os paralelepípedos de mãos dadas respondendo a terrível pergunta: "onde está o amor, onde está o amor?"

Dariam vexames, e vexames dos mais livres, por que costumavam ignorar parte do mundo enquanto estavam sozinhos consigo mesmos. E sorririam, adorariam-se sem possuir um ao outro, e assim recordariam seus melhores momentos da forma mais exigente possível: vivendo.

Ele faria, faria isto tudo. Faria sem pestanejar, faria sem enquadrá-la nos horizontes de expectativa ou nos passados que sobredeterminavam a vida dos frouxos ou dos temerosos. Faria isto tudo, amaria como uma dinamite, sem nenhum senão, sem nenhum porquê...

Amaria-a, assim como escreveu, amaria-a intensamente, se houvesse algo além do que ele próprio esculpia. Amaria intensamente e faria tudo como assim descreveu, se ela realmente existisse, esta personagem de conto, de sonho, da idealização.

Por enquanto, jogava gamão e escrevia, com a cerveja, a música francesa e a imaginação; fria como um arrabalde emocional; assim, sempre esquecido.

Contos incompletos

Ainda doía de uma forma tão viva, que Vasilli acostumara-se a confundir as janelas com os corações.

Sentia a poesia como uma verdadeira oração, uma oração viva, que clamava impiedosa sob o ardor de uma memória e de um desejo:

"Sou um pingo de chuva... Emoldurado pela cor dos teus olhos... Sou um pedaço de nuvem apimentado pelo ardor da tua boca. Sou um raio de luz. Perdido na curva do teu corpo. Sou uma folha ao vento, Cheio de ti, completo de tu. Sou um cálice transbordando paixão. Sou um efeito, um acidente, um tufão... e tu... És uma força da Natureza!"

A folha de papel envelhecia, a poesia continuava viva e resplandecia apenas pelas bordas do cotidiano. E Vasilli quando olhava, olhava para o reflexo sob a gota d'água que brutalizada pelo clima e pelos olhares dos sujeitos, escorria por sob o vidro da janela e emudeciam, os dois, ele e a janela.

As terças, as quartas, e as segundas, não cabiam, não se conformavam, e volta e meia a poesia retornava, na esquina, no banho de manhã, no café da tarde, ou simplesmente voltava: "emoldurada pela cor dos teus olhos" como um pedaço de nuvem.

Vasilli em sua esperança crônica de início de semana, costumava enganá-la com algo que chamam costumeiramente de racionalidade, mas era em vão esconder si mesmo em filas de banco, tarefas e compromissos profissionais ou até mesmo nas detestáveis e não menos odiosas frases de efeito de nove segundos. Detestáveis profissionais do cinismo ou consumidores de alguma fôrma-existência descartável que terrívelmente funciona! Funciona! E por ela funcionar, que cento e setenta e cinco pessoas podem se espremer num vagão dentro do metrô, onde cabem apenas noventa.

Adorava o céu de sua janela. E era seu céu. Um céu particular, como todos os céus o são.

domingo, 16 de novembro de 2008

O poeta só nasce na mentira ou na vergonha

E seria sempre mais fácil dizer os motivos.

Falar claro e límpidamente, como alguém, que resolvesse não ter a sociedade por perto.

Prosopografias ruivas ou de como a realidade objetiva procura confirmar a subjetiva

Não sabia bem o que faria; se algo mais do que a solidão pretendesse. Começa secreto como um substantivo sussurro escondido no fundo da sala, mas acaba crescendo como uma fama repentina. E na janela há esta paisagem torta que não cabe bem no seu horizonte. Não se encaixa. E cheira a mofo novo.

Ele obedece o coração, e por isto sofre, sofre baixinho... Sofre calado porque calado ele não rompe as regras dos outros que comprou para si próprio, num momento de endividamento.

Olha de ímpeto o ousado; nega o óbvio, mas mantém-se firme, apesar do quê, o olhar despretensioso daquela mulher dói; de verdade: eis mais uma idealização.

E da vida, pouco extrai a não ser o intenso; de que vale a experiência, se é o cheiro, o cheiro daquela mulher que acaba contando.

Ela entra, e nem está ruiva, mas acaba contagiando tudo, o caderno, a caneta, o café e a velha impressão, o ambiente todo. Ele nem sabe se é o sentimento novo, ou ela mesmo, já repetida, que conta.

Cheira a fumo e ele nem fuma. Mas se reproduz.

E ela. Bem ela, é mortal com poucas palavras, mesmo quando erra, mesmo quando erra, ela mata, mata-o, mata ele mesmo, esquarteja-o com o não-dito: Mas ela não sabe.

Ela apenas segue, como uma força da natureza.

Ele sofre, sofre com alegria, não por amar a dor: mas o sabe que, há sempre, há sempre uma ausência que encaixa presenças que faltavam. Dor e alegria, meras gangorras: necessárias!

E ainda assim, nas quintas à tarde, ou nas sextas de manhã, ele sabe que foge. Sete meses de luz!

Do mofo novo, a escuridão: sofre de novo?

Uma nova musa, uma nova ruiva?

Com quantas secretas terá de seguir? Força da natureza.

Foge. Foge de novo homenzinho. Foge com o diabo e a luz nos teus olhos.

Foge com o diabo ruivo, dentro de si, dentro de tu mesmo.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Assim que eu entrei na minha rua começou a chover

assim que eu entrei na minha rua começou a chover
assim que eu entrei na minha rua começou a chover
assim que eu entrei na minha rua começou a chover
assim que eu entrei na minha rua começou a chover
assim que eu entrei na minha rua começou a chover
assim que eu entrei na minha rua começou a chover
assim que eu entrei na minha rua começou a chover
assim que eu entrei na minha rua começou a chover

E choveu muito.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Namorada de final de ano

Às vezes, melhor seria
Se do fogão permitíssemos
Queimaduras

Que inconfortáveis
Estragam
Todo o poema

E eu, perdido na areia, no concreto
No paralelepípedo

Ou em volta de mim mesmo

Apenas pensasse
Como pensasse

Esquentando a água para o chá: Preciso de um horóscopo ou de uma namorada de final de ano!

Ambos, ou ambas, são particularmente imprevisíveis.

E mesmo assim. Seria melhor.
Se do fogão inconfortável; permitíssemos assim...

Algumas queimaduras.

Morro vivo mas não vivo morto

Sou feliz. Sou triste.

Do tamanho que esta estrutura assim me permite.

E como a natureza e o mar, mato-me e renasço no coito cotidiano da vida.

Assim, do tamanho que a minha liberdade me permite.

Permito-me assim, a dizer, a gritar, a gozar: mudem as estruturas, mudem as liberdades; permitam-se o mundo.

Auspícios Animalescos

Quando situava-se no centro do furacão algo o impelia para as bordas, como um Furão, ou um Guaximin, apesar de achar qualquer semelhança com a natureza selvagem extremamente simplista. E simplismo era um refúgio de gente fudida, fudida e feliz. Então resolveu escrever tudo. E aí resolveu voltar no que tinha escrito e rechear tudo aquilo com o que despertava e trazia à tona os tabus.

Algo o impelia a repensar e ver em toda a situação mal explorada uma oportunidade.

Uma oportunidade para uma tragédia, uma deliciosa tragédia dionisíaca, regada à cinco ou seis guimbas de cigarro, a cinco ou seis reflexões sobre o que fazer com aquele caso passageiro, ou como montar um manual que ensinasse a abandonar aquele amor platônico em cinco, no máximo seis semanas; apesar do quê, três ou quatro semanas eram uma regra de campeão.

Escrevia melhor quando não tinha regras, quando cuspia nas normas, quando esquecia seus censores ocultos, que caminhavam e lhe convidam para festas, corações felizes que lhe encontravam no cotidiano da aula, no cotidiano da sala de estar, os censores no falso mezzanino do consultório médico, o cabaré acadêmico ou a igreja dos contras.

Quando pensava que escrevia apenas para si, e que ninguém além dele próprio iria ler os absurdos, aí sim, o novo surgia, o ousado brotava. E algumas pessoas, egocêntricas como de costume, achavam que poderiam descortinar vinte e cinco anos de segredo com uma lida casual... bobagens! Irônicos! Como um míssil de cinquenta milhões atravessando um país pobre no sul da África Meridional! Irônico.

Estava tudo ao alcance das decisões. Mas há um caminho irriquieto e sinuoso entre a decisão e a ação. Agir era sempre mais barato, mais rápido, mais fácil. Comprar café custava oitenta centavos! Mas puxar assunto com a ruiva do lado direito do balcão! Ah! Isto custava muito mais caro... muito mais...

Decidir envolve mobilizar. Mobilizar todos os músculos e vontades, dobrar a consciência, obrigar o corpo. E isto requer contingência, requer uma concordância cínica de todas as partes de si próprio, e concordância requer diálogo. E isto não era fácil! Um diálogo que está subordinado aos controles históricos, aos domínios e apropriações do corpo. Que até surtia efeito quando dizia para a Ruiva, dois anos depois que amava seus próprios heterônimos e não a ela, mas definitivamente não conseguia superar as limitações dessa vida pseudo-medíocre que queriam vender-lhe junto com os planos de saúde nas saídas do metrô.

E era tão simples, tão simples, como comprar um livro no sábado de manhã num sebo mal frequentado de Copacabana; e já não gastava mais do que quinze reais consigo mesmo, há alguns anos... Mas o inesperado de tudo isso, era recorrer aos instintos animais, a habituar-se ao inabituável e inesperado despertar do óbvio.

Como a freira que sim, como se não imaginasse deus, liberasse hormônios e algo mágico acontecia, como uma ereção ao inverso.

Falar muito é apenas se esconder dos demais. Tentar melhor é redundância.

Tentar é sempre o melhor.

Tentar sempre afasta os censores. Tentar é habituar-se aos auspícios animalescos, mesmo que a conversa com a ruiva seja indevidamente inapropriada ou isenta de talento.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Para Florbela Espanca

Quando o poema
E o poeta
Vivem mútuamente para si.

Todo o mundo
Despedaçado de ambos

Resolvem conspirar
À favor do poema
Não do poeta

Gênio sem brilho
Cunhado por um
Sujeitinho,
Gente comum.

O poema aguarda
Que a flor triste
Do fingido, resolva
Dar vida ao poema

E quando morre o poema
O sujeito aguarda
E às vezes aguarda
Novamente

Mas quando morre o sujeito,
Em favor do poema
O poema e o mundo fingido
De gente comum
Despedaçado de ambos
Elevam o poeta à gênio

obs: em homenagem a Florbela Espanca, é óbvio.

Poesia Húngara: SANDOR CSOÓRI

Um de meus habituais e talvez non-sense hobbies é tentar conhecer poesia das mais distintas regiões do globo. Quanto mais culturalmente distante no sentido em que me permite meu limitado regionalismo latino-americano, melhor.

Inauguro esta seção, com o poeta húngaro Sandor Csoóri. A poesia realmente não tem fronteiras, mesmo as mais distantes. A tradução deve ser algo complicado... diga-se de passagem.

MEMÓRIA DA NEVE

Às vezes o Inverno muda de parecer
e começa a nevar,
neva espessamente, em desespero, como se temesse
não viver até o dia de amanhã.
Nestes casos é melhor desligar o telefone, a campaínha da porta,
pôr vinho a ferver em cima do fogão,
folhear cartas antigas
e olhar para trás, também, para a minha vida,
como se ela não tivesse acontecido.
Como se não me tivesse olhado o canhão, nem olhos lascivos,
como mão surradas, não se tivessem alongado pela minha mão;
e tudo que fosse política, amor, dobre de sinos,
me esperasse de novo num horizonte de oceano.
Nestes casos o melhor é imaginar
que ainda posso chorar pela minha cabeça perdida,
o vento atrai os lilases para cima
de camas, meios-corpos e almofadas desgrenhadas,
e no juízo final terrestre
posso estar de pé ao lado de bons companheiros
em camisa macia e casaco leve
além de fumo, tascas, cemitérios,
fixando o olhar nos olhos dum país a perverter-se
sublimemente,
na minha cabeça há memória de neve,
neve, neve como se o reboco duma catedral
tombasse silenciosamente.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Insetos sem compaixão

Quando entrei naquele cômodo, às quatro da manhã, o inseto fugiu.

Contorcia-se na porta de pinho, com medo da minha luz e do meu movimento.

O artrópode, aquele que eu senti pena, deveria mesmo, era sentir pena de mim.

O navegador e o cartógrafo

Eu insisto é verdade. Navego e insisto. Insisto por que não me enfastio de mim mesmo. Pois em mim há um outro. Um outro que insiste em viver e que decerto não nego em seu conteúdo.

Mas o diferencio por ser este "um outro". Um outro que vive em mim; um cartógrafo, que tem outras idéias, propósitos ou razões, apesar de corroer as mesmas vestes e vestir o mesmo corpo.

Este outro alguns dias vence. Alguns dias perde.

Quando ganha, pinta, bebe e escreve. Mas há dias em que venço. Raríssimos.

E algo de tudo isso eu faço. Faço completamente sem ele, apesar de entediar-me rápidamente.

Alguns dias o empate. Dormimos. Sonhamos um com o outro. Sem saber bem, quão espelhos, quão imagens somos verdadeiramente.

No jogo e no sonho a tensão; cabelos vermelhos nus como novidades, olhos de rainhas e é dia de limpar o lodo do abismo, abismo que eu descortinei. Abismo onde resolvi navegar com meu cartógrafo.

Quando o outro lhe convidar ao abismo: vá preparado. Lanternas, luzes, barraca de dormir, saudades.

Não há mapa a venda. E os que hão, da mão do cartógrafo nasceram; portanto não são confiáveis.

Sem mapas não se acham as ruivas.

E é exatamente por isto; que eu prefiro ser encontrado. Encontrado pela ruiva, por acá, acá no abismo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Compro Ouro

Detestava receber papéis na rua
Mas deus
Sempre lhe anunciava
Alguns puteiros

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Bonitinho mas ordinário

As coisas tinham mudado. Anatole viajara para o Uruguai.

Eu vadiei pelo interior de cidades tão distintas quanto meu humor, e você, bem, você se foi, e nunca mais voltou.

Era um dia chuvoso, uma chuva que molhava a madeira velha no fundo dos quintais, o cheiro de paralelepípedo molhado me contaminava, e eu me via obrigado a evocar uma lembrança covarde.

A chuva acabava rápido. Eu demorava mais a me acabar. Acabava-me lentamente, mas com certo orgulho e prazer, afinal, matar-me cotidianamente me fazia um ordinário mais vivo.

Quando eu retornei para a cidade caos, eu me lembrei de pegar aquelas velhas correspondências, suas correspondências, que você tinha me enviado. Enquanto eu folheava uma das cartas, me lembrei da decepção que você sentiu quando eu fiz aquela brincadeira; eu disse que iria me prostituir na terça a tarde, prostituir-me pelo capitalismo, mas você não gostou.

Na época eu não entendi. Sensível não seria a palavra adequada, porque evocaria fragilidade, e eu detesto ser frágil, mas estúpido eu não sou, rude é o adequado, mas você sempre soube que eu sou é um filho da puta intuitivo.

Sou distraído. E empático. Você sabe. Intuitivo e empático são coisas normalmente desagradáveis. Além de anteciparem a derrota, acabam nos fazendo identificar nos algozes.

Heróis ou carrascos.

Eu sempre reclamei com você, que essa minha empatia era um desconforto cotidiano. Era um soco no estômago, uma úlcera que crescia, que me obrigava a compreender mesmo os canalhas.

E eu odiava ter de entender os canalhas. A não ser quando eu desejava aniquilá-los verbalmente.

A minha empatia folheou você. Mesmo com seus olhos(verdes ou azuis?) emblemáticos eu te atravessava no meio da tua avenida, aquela que ligava seu coração aos meus olhos, aquela avenida bonita, feita de sangue, de beijos de final de semana, beijos de domingo, depois do cinema e da pipoca, e você sabe, e sempre sabia que era hora de nos fatiarmos mútuamente. Era hora de revelar aquela sombra que obscurecida pela luz dos nossos valores, ousava retornar pela porta de trás, do modo mais honesto: com lágrimas, relâmpagos e vez ou outra, queimaduras de cigarro.

A gente se entregava. E o amor mais bonito é o que menos certo dá. O amor mais legal é justamente aquele que mata parte de si para sobreviver.

Quando você se prostituiu, eu não sabia bem o que dizer, eu já sabia das drogas, eu sabia de tudo o que fizemos juntos naquela noite louca, mas paramos por ali. Eu não sabia, eu fiquei preso, eu sabia que ficar preso era me condenar, mas você enlouqueceu ruiva, você enlouqueceu, enquanto eu sabia que se me condenassem eu tomaria veneno ou cortaria os pulsos, mas graças a nosso amigo Anatole, eu, o pobre Vasilli, consegui chegar na cidade caos ileso.

Aquilo foi duro demais. Eu me odiei, por que eu fui responsável, você precisava sobreviver, precisava me soltar, e eu precisava viver, mas não fui forte o suficiente para me matar.

E você se prostituiu.

Ruiva, eu rodopiei durante anos, eu te reencontrei e te perdi, eu te perdi mais de uma vez, você estava lá, em cada viagem, em cada espelho, em cada esperança... Eu mudava de emprego, de cidade, de rotina, mas nada mudava realmente. Eu ainda era madeira velha apodrecendo mais.

Os pingos de chuva molhavam esta madeira velha, eu me amava mais do que as pessoas ao meu redor. E você meu amor. Você meu amor, meu único amor! Estava perdida, perdida, sem que eu pudesse te encontrar ao redor do globo, você era um fantasma vivo, que me condenava a te procurar, te procurar, como um Sísifo pós-moderno, como um Ícaro condenado a desabar sob o céu cinza da modernidade tardia, eu apenas olhava espelhos, recebia suas cartas, algumas que nunca mais chegavam e rezava para conseguir cigarros o suficiente no próximo final de semana.

Eu acendia um cigarro, sempre nas noites secas ou muito chuvosas, e me lembrava que você não estava aqui, mas sua presença, sua presença era um ultimato.

Eu me afoguei diversas vezes nas minhas lágrimas; ruiva, eu me viciei em duas coisas distintas, aparentemente opostas, mas possíveis: eu amei a tua presença, amei a tua ausência.

E você, você, com seus cabelos ruivos... Nós dois nus, naquele quarto calorento e sufocante, com relâmpagos pós-chuva, os dois abertos no meio, abertos emocionalmente e físicamente, beijando-nos e nos desejando, mas fundando limites... Sempre acabávamos teorizando e a mágica nunca acabava. A mágica nunca acabava; nem quando eu saía nu e voltava com água gelada.

Aí você já jazia viva, dormindo, como um anjo, e eu te olhava ainda mais, bebia a água sozinho, e me lembrava sempre quando você sussurrava aquela palavra estúpida antes e durante o sexo, "bonitinho mas ordinário, bonitinho mas ordinário..." E eu adorava...

E foi essa única frase que me permitiu lembrar de você, sem gosto de madeira velha, pois eu sempre dava um sorriso e desencadeava todo o resto. Eu sempre me prostituía em troca das tuas lembranças. Mesmo você não estando aqui.

Mesmo longe, você não morria. E mesmo se você morresse, duvido que você ficaria longe da avenida que liga meu coração aos seus olhos. Eu duvido muito.