segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Bonitinho mas ordinário

As coisas tinham mudado. Anatole viajara para o Uruguai.

Eu vadiei pelo interior de cidades tão distintas quanto meu humor, e você, bem, você se foi, e nunca mais voltou.

Era um dia chuvoso, uma chuva que molhava a madeira velha no fundo dos quintais, o cheiro de paralelepípedo molhado me contaminava, e eu me via obrigado a evocar uma lembrança covarde.

A chuva acabava rápido. Eu demorava mais a me acabar. Acabava-me lentamente, mas com certo orgulho e prazer, afinal, matar-me cotidianamente me fazia um ordinário mais vivo.

Quando eu retornei para a cidade caos, eu me lembrei de pegar aquelas velhas correspondências, suas correspondências, que você tinha me enviado. Enquanto eu folheava uma das cartas, me lembrei da decepção que você sentiu quando eu fiz aquela brincadeira; eu disse que iria me prostituir na terça a tarde, prostituir-me pelo capitalismo, mas você não gostou.

Na época eu não entendi. Sensível não seria a palavra adequada, porque evocaria fragilidade, e eu detesto ser frágil, mas estúpido eu não sou, rude é o adequado, mas você sempre soube que eu sou é um filho da puta intuitivo.

Sou distraído. E empático. Você sabe. Intuitivo e empático são coisas normalmente desagradáveis. Além de anteciparem a derrota, acabam nos fazendo identificar nos algozes.

Heróis ou carrascos.

Eu sempre reclamei com você, que essa minha empatia era um desconforto cotidiano. Era um soco no estômago, uma úlcera que crescia, que me obrigava a compreender mesmo os canalhas.

E eu odiava ter de entender os canalhas. A não ser quando eu desejava aniquilá-los verbalmente.

A minha empatia folheou você. Mesmo com seus olhos(verdes ou azuis?) emblemáticos eu te atravessava no meio da tua avenida, aquela que ligava seu coração aos meus olhos, aquela avenida bonita, feita de sangue, de beijos de final de semana, beijos de domingo, depois do cinema e da pipoca, e você sabe, e sempre sabia que era hora de nos fatiarmos mútuamente. Era hora de revelar aquela sombra que obscurecida pela luz dos nossos valores, ousava retornar pela porta de trás, do modo mais honesto: com lágrimas, relâmpagos e vez ou outra, queimaduras de cigarro.

A gente se entregava. E o amor mais bonito é o que menos certo dá. O amor mais legal é justamente aquele que mata parte de si para sobreviver.

Quando você se prostituiu, eu não sabia bem o que dizer, eu já sabia das drogas, eu sabia de tudo o que fizemos juntos naquela noite louca, mas paramos por ali. Eu não sabia, eu fiquei preso, eu sabia que ficar preso era me condenar, mas você enlouqueceu ruiva, você enlouqueceu, enquanto eu sabia que se me condenassem eu tomaria veneno ou cortaria os pulsos, mas graças a nosso amigo Anatole, eu, o pobre Vasilli, consegui chegar na cidade caos ileso.

Aquilo foi duro demais. Eu me odiei, por que eu fui responsável, você precisava sobreviver, precisava me soltar, e eu precisava viver, mas não fui forte o suficiente para me matar.

E você se prostituiu.

Ruiva, eu rodopiei durante anos, eu te reencontrei e te perdi, eu te perdi mais de uma vez, você estava lá, em cada viagem, em cada espelho, em cada esperança... Eu mudava de emprego, de cidade, de rotina, mas nada mudava realmente. Eu ainda era madeira velha apodrecendo mais.

Os pingos de chuva molhavam esta madeira velha, eu me amava mais do que as pessoas ao meu redor. E você meu amor. Você meu amor, meu único amor! Estava perdida, perdida, sem que eu pudesse te encontrar ao redor do globo, você era um fantasma vivo, que me condenava a te procurar, te procurar, como um Sísifo pós-moderno, como um Ícaro condenado a desabar sob o céu cinza da modernidade tardia, eu apenas olhava espelhos, recebia suas cartas, algumas que nunca mais chegavam e rezava para conseguir cigarros o suficiente no próximo final de semana.

Eu acendia um cigarro, sempre nas noites secas ou muito chuvosas, e me lembrava que você não estava aqui, mas sua presença, sua presença era um ultimato.

Eu me afoguei diversas vezes nas minhas lágrimas; ruiva, eu me viciei em duas coisas distintas, aparentemente opostas, mas possíveis: eu amei a tua presença, amei a tua ausência.

E você, você, com seus cabelos ruivos... Nós dois nus, naquele quarto calorento e sufocante, com relâmpagos pós-chuva, os dois abertos no meio, abertos emocionalmente e físicamente, beijando-nos e nos desejando, mas fundando limites... Sempre acabávamos teorizando e a mágica nunca acabava. A mágica nunca acabava; nem quando eu saía nu e voltava com água gelada.

Aí você já jazia viva, dormindo, como um anjo, e eu te olhava ainda mais, bebia a água sozinho, e me lembrava sempre quando você sussurrava aquela palavra estúpida antes e durante o sexo, "bonitinho mas ordinário, bonitinho mas ordinário..." E eu adorava...

E foi essa única frase que me permitiu lembrar de você, sem gosto de madeira velha, pois eu sempre dava um sorriso e desencadeava todo o resto. Eu sempre me prostituía em troca das tuas lembranças. Mesmo você não estando aqui.

Mesmo longe, você não morria. E mesmo se você morresse, duvido que você ficaria longe da avenida que liga meu coração aos seus olhos. Eu duvido muito.

Um comentário:

Anônimo disse...

Cara os contos estão surpreendentes!
Sempre que termino de ler um fico ansioso por outro, e cada vez mais por um livro.
Abraço!