segunda-feira, 31 de março de 2008

As memórias que não eram dele

Rafael sofria de um mal irreparável. Memórias que não eram dele. Não eram de ninguém na verdade, apesar de alguns indivíduos se apropriarem no entanto de algumas, no desenrolar dos fatos, elas surgiam, e eram sempre de sujeito indeterminado.

A questão, e era sim, esta a grande questão, que Rafael não sabia exatamente onde começavam suas memórias e onde terminavam suas ilusões. Ninguém sabe na verdade, mas no caso específico deste jornalista desocupado, havia um quê de patológico, que transformava sonhos, alentos aleatórios, imaginações em fatos, em verdade, em história.

Não era algo tão fácil, preocupar-se com o inesperado, com o não acontecido. E a fronteira entre o real e o imaginado, era para Rafael, tão tênue quanto a espuma de uma cerveja servida num dia quente. Não saber o que era real e o que era imaginado era um delicioso jogo de armar, mas Rafael sabia, que o real era tudo o que estava dentro de seu escopo, e o que estava em seu escopo, era o que ele sim criava; era um vocacionado niilista de profissão.

Treze cervejas, mas na verdade eram doze, isto não fazia importância, não para ele, este puto cacofônico, que repetia e perseguia paroxítonas como quem come vogais de ócio seguidas de hiatos de felicidade, mas acostumara-se a duvidar de suas memórias: quatro ou cinco páginas lidas? sete ou oito estruturas verbais? Amanda ou Mônica? Catete ou Flamengo? Pós-estruturalismo ou arquitetura neo-romântica?

Depois da chuva torrencial, compreendeu que deveria partir, e foi asim que avisou, acenou, para os que o acompanhavam, que deveria misturar-se a multidão, uma multidão de vozes que calava dentro de si, para depois então prosseguir, atravessando uma avenida de mão dupla, quase-atropelado, onde às quatro da manhã encontraria em sonhos, metade dos seus amigos ou reclamando daquele fato dormindo, ou sonhando com ápices sexuais muito mal reprimidos.

A verdade, e verdade era algo tão manipulável quanto uma massinha de modelar às cinco da manhã, era que as mentiras, ou diria em tom reprovável - respostas acomodadas que tornavam-se parte do real, e ele sempre fizera questão de separar, reprimir, o real do ideal, por que supostamente isto o faria mais concreto dentro do esfarelamento crônico da modernidade.

Vendo toda a questão por um lado Vassilliano, e este lado era a aresta mais individualista que ele pudera conceber, tudo tornava-se apenas um quebra-cabeças mal encaixado, onde o azedume do respeito concentrava-se isoladamente em um feiche mal feito de poesia: TODA PARTE INTRADUZÍVEL É ALGO QUE CLAMA POR UM GRITO. UM GRITO DE VIDA, DE DOR, DE ALGO QUE NÃO SE POSSA TRADUZIR COM CINCO OU SEIS CONTOS.

Não sabia muito bem o que era sonhado, o que era realizado, e odiava boa parte dos atendentes de telemarketing, quando, exatamente desdobrava-se e neste sentid0 esforçava-se para provar esta tese, começavam a utilizar gerúndios afetivos. Pois não existe o "estamos nos amando", existe o nos amamos!

Não é possível estabelecer pontes sinceras entre o ideal e o real conquanto se busque algo que continue a saber que pode não ser real: como daquela vez em que socou um desafeto, quando na verdade, estava dormindo às seis da manhã num ponto de ônibus mal-cheiroso.

A verdade era que estava cansado.

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