quinta-feira, 24 de maio de 2007

Da grande porca que sobrevivera

Todos os porcos são iguais. Mais há porcos mais iguais que os outros.

Entendeu?

Gritou; estava bêbado.

Jogara as chaves por cima da mesa, uma mesa de madeira patéticamente solitária, uma madeira de baixa qualidade, em cima apenas a porca, um cinzeiro cheio de guimbas e um bloco de papel com rascunhos quaisquer. A porca estava parcialmente manca, fruto de um derrubão que lhe arrancara parte da pata esquerda. Culpa da maldita cuba libre. Gritou um merda tão vivaz, que assustou o gato que resolvera circular toda semana passada pelo apartamento.

Ainda tateara alguns segundos para apagar o interruptor e acender o abajour de centro que comprara na feira de antiguidade aos sábados da Praça XV e não-se-sabe o porquê mas o vendedor resolveu limpar os dentes enquanto resolvia convencê-lo de que o valor do abajour era justo a princípio, coisa que de fato convenceu-o com um virar de costas teatral que definiu toda a futura barganha.

Pensou o quão classe média era. Estava dominado, recheado dos trejeitos e sonhos típicamente pequeno-burgueses que tanto fazia questão de rejeitar, ou diria projetar... projetar...

Sentou com a garrafa de cerveja próxima a cadeira, olhou para a porca, a admirou antes de encher o copo e tragar a espuma, a cerveja e parte das decepções. Botou a porca olhando para a parede oposta a da janela e pensou que escrever contos pequeno-burgueses era uma sina sua. Jamais conseguiria escrever contos que lhe trariam realmente um pouco de dignidade, por que era necessário um tom de sobriedade que não obtia durante os dias de semana quando resolvia confrontar-se com si próprio. Não era um Máximo Górki muito menos um Lima Barreto, era um arremedo de Kafka com umas pitadas repetitivas de um Badeulaire de quinta-categoria.

Nesses dias, era apenas emoção e fundos falsos. Parava para recolher pedaços durante seus introspectivos quartos vazios. Vazios de si próprio.

Pegou a porca novamente, alisou-a como uma lâmpada mágica, como um objeto parado poderia lhe dizer tanto? Como?

E dizia. Dizia sem abrir lábios que nem tinha. Dizia com as lembranças, com o simbólico, com o imaginário não-lido, com a falsa impressão dos sorrisos, com os encontros e desencontros dos dias finais da semana; dizia tanto que faltava chorar. Mas ela não tinha olhos, nem pupilas, apenas buracos em paredes de barro. Quando olhava para a porca lembrava dos mesmos olhares brilhantes que o castigavam com a indiferença. A indiferença, o desprezo é o oposto do amor, não o ódio. O ódio é parceiro. Falara isso numa situação esdrúxula é verdade, chovia, e era o dia dos conselhos errados. Conselhos errados era a data que quatro campeões se reuníam para construir uma meta-filosofia da desgraça. Era engraçado. Um axioma antigo que o reconfortava.

Pois sempre precisava falar, falar entre algumas mesas de bar era fundamental para ver se conseguia exorcizar a porca, o passado, o símbolo e o diabo a quatro! Mas não era tão fácil.

Não era tão fácil por que quando acordava tinha a porca para lembrar da ruiva, da maldita ruiva e quando dormia, os sonhos se encarregavam de mostrá-lo o quanto podia ser cruel essa tal de memória. Evitar não é o remédio. Confrontar é a solução. Não é um tratamento homeopático, mas mesmo assim é algo corajoso a se fazer.

A temática não era lá essas coisas. Mas isso resolveria nos próximos meses.

Nenhum comentário: