quarta-feira, 9 de maio de 2007

De quando ela abriu a carta e resolveu lê-la até o final

Em certos dias eu detesto diálogos. Por isso ruiva hoje eu resolvi pintar, por que pintando eu me obrigo a ficar calado e meu dia é muito mais silencioso. Eu estava cansado da velha rotina, e quando eu voltei, desci na estação de metrô mais convencional, antes de tomar umas cervejas sozinho no bar de costume. Eu apagava um ou dois cigarros, como fazia com as letras e as vírgulas em meus dias de ociosidade, antes de partir para Les Ardoines com uma das mãos escondidas nos bolsos do meu casaco comprado no mercado das pulgas local.

Nessas horas eu às vezes me deparava com algum vazio criativo, não sem antes me lembrar as ruas tão cheias de miséria que assolavam a América do Sul. Decerto a miséria aparecia de maneiras mais sutis, como num metrô de dia de semana ou escondida em alguns bancos perto da estação de Gare Austerlitz, não tão vivaz quanto a humilhação dos catadores de papel e de lixo que lutavam para sobreviver na selva de pedra do centro da cidade do Rio de Janeiro mas o mecanismo primordial era essencialmente o mesmo: a exploração, o capital, o lucro.

A exclusão, o cinismo dos coniventes com parte deste sistema maldito e a depravação social com que parte deste darwinismo social era encarado eram apenas faces tímidas de um liberalismo que podia ser muito mais cruel na África ou em parte da América Central, mas que continuavam a me encher de ódio ruiva, de ódio e de vontade de construir um novo mundo. Sei que mesmo afastada de mim você estaria fazendo o mesmo, por que desde que nosso plano conjunto deu errado, eu vez ou outra achei que iria desistir de tudo por alguns momentos e projetei essa minha fraqueza em minhas falsas intuições que diziam que você foi tomar algum chá de erva na Bolívia enquanto despedia-se da face mais agressiva da luta contra este sistema maldito, mas eu estava errado, eu sinto que estava completamente equivocado e efetivamente eu usei mais sinais do que poderia para mostrar que você ainda estava viva em meu coração.

Sei que você está lutando contra este sistema maldito e inundando as pessoas e os locais que você deve estar se envolvendo com otimismo e força de vontade para mudar senão a totalidade, mas parte desse cotidiano sofrido. Pintar parte da realidade sempre foi nosso propósito, mesmo que vez outra tivéssemos recorrido à maneiras não muito convencionais de colorir o mundo, podemos dizer que nós tentamos. Fomos Chiapas, Paris no primeiro de maio, um pouco dos sindicalistas na Colômbia e dos professores de Oaxaca. Fomos um pouco de tudo. Andamos e falamos como os palestinos em noites de tristeza ou quando a lua insistia em nos perseguir éramos nós mesmos.

Sei que isso não fará sentido para muitas pessoas, mas decerto consegui remover muito da dor que é não estar ao teu lado, pensando que de alguma maneira estamos mais conectados que muitas pessoas estariam, apesar do que não físicamente.

Falamos a mesma língua, apesar de nem sempre o mesmo idioma. Somos parte de uma resistência que tímida como uma flor que nasce no asfalto prefere não se expor totalmente, mas arisca, insiste em não retroceder frente ao mundo plástico que a rodeia.

Não há muito para falar. A poesia da revolta ainda me seduz com uma excitação tão nova e contagiante, que escrever esta carta é apenas parte do processo.

Caso não nos encontremos mais, como você mesmo dizia.... Nos vemos no arco-íris da história, nos vemos no céu colorido da esperança...

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