sábado, 1 de dezembro de 2007

Poliedro Infinito

-Como está?

-Bem. Tirando alguns anos de idade, um pouco de cafeína no estômago e uma ligeira melancolia pré-dominical, é claro.

- Quanto custou?

- 60 pilas, sem troco para a cerveja.

- Pode ficar. A única coisa que eu guardo são as mágoas.

Despediu-se.

Estava muito ruim.

Frase excessivamente clichê. Vanessa não gostou. Amassou outra folha. Aquele diálogo era uma verdadeira porcaria. Quando enfim conseguiria escrever algo realmente interessante? Pensou em passear pelo bairro, mas já eram duas da madrugada. Seus cabelos longos, encaracolados, negros como o pulmão de Jonas. Seu vizinho nicotinomaníaco. Talvez colocar aquele velho cd de jazz meio arranhado, meio funcionado. Talvez. Talvez...

- Não. Se isso é o máximo que "usted puede escribir... no tengo la idea de cuál és su mejor!", gritou o espanhol, espanhol não, sou basco filha da puta, eu sou basco, hablo espanhol e portunhol para vocês me entenderem, pensou, e se é o máximo... Eu não quero.

Socou a mesa.

Rodolfo saiu decepcionado. Foram três meses descrevendo Vanessa. Sua compulsão por anfetaminas, sua cafeteira quebrada, seu pedaço de arremedo em forma de poesia. Mas não era suficientemente bom. Não tinha a assinatura dos gigantes, dos gênios, dos que comem e bebem o sangue de amadores no final de semana.

Amadores, enfileirados, enfileirados como Rodolfo. Canetas secas nas mãos, canetas falhando. Mas canetas não falham, elas quebram, dão defeito. "Falhar" é um eufemismo, uma verdadeira proteção para um instrumento supostamente sagrado. Canetas são perfeitas. Funcionam muito bem. Aparentemente de uma proporção até maior do que propulsores de foguetes. Mas na verdade nós sabemos, que as canetas falham como qualquer um, como qualquer escritor, como qualquer objeto mórbido, elas falham. Falam. São tecnologias. E tecnologias morrem, nascem, morrem. Isto daria um bom texto. Desenvolverei o carcamano, trabalharei os alemães, o mito das nacões, o espanhol que na verdade é basco e Rodolfo o escritor que na verdade é poeta.

Rodolfo não sabe, mas morrerá atropelado no penúltimo capítulo. Talvez por um ônibus. Ou por uma bicicleta, é mais irônico, sim, sorriu, é mais irônico.

Encheu o copo de cerveja, apagou as luzes do quarto e acendeu a luminária de centro. A porca de barro estava lá o olhando. Usava uma bermuda verde ridícula, nada nada pós, pús-moderno. Nem estética existencialista tem. Escritor de merda. Rodolfo é minha cria. Um mero marionete. Pule Rodolfo! Pule seu maldito! Morra atropelado por uma bicicleta agora! Agora não! Somente no próximo capítulo! No próximo capítulo!


Em algum lugar, fora e dentro dos capítulos, mais exatamente num poliedro, espreitava Alcindo. Sim, seu nome era um tanto ridículo. Mas Alcindo era bom com as letras. Seu personagem era anônimo. sem estética existencialista, meio esquizofrênico, e de uns tempos para cá isolacionista. Sim, isolacionista. Este texto tinha ficado bom. Alcindo gostou. Gostou da forma com que encaixou as luzes do quarto, a porca de barro.

Estava tudo lá.

Alcindo...

Quem escolhe um nome ridículo deste? Meio parágrafo. Não lerei a tempo. Não entregarei, suspirou Carlos. Alcindo a esta hora estava sendo lido dentro de uma condução, a caminho da biblioteca municipal. Papel reciclado. Texto de seis ou sete páginas.

Multas de bibliotecas são formas explícitas de punição intelectual?

Alguém deve ter jogado isso fora. Está no mundo das idéias platonianas. Era o velho Morel. Sim, o velho Morel. Sua perspicaz barba cinza, o fazia escrever sete ou doze palavras e ser aclamado num velho jornal de poesia. "Meio parágrafo. Não entrego a tempo. Não entregarei, suspirou Carlos. " Cunhou com cuidado. Num dia de chuva, comendo amendoins chineses.

Saíra no número dezessete, rendera duas dúzias de comentários elogiosos. Era um novo record. Morel espreguiçava-se às 8h da manhã, mamão papaya na mesa, cigarro e o jornal de centro-esquerda local. Foi um bom artigo, um bom artigo, pensou Morel, este jornal sempre me surpreende. Morel não tinha filhos, a propósito.

Poliédricamente, no final da corda, alguém resolveu se manter anônimo. O espelho dentro do espelho, foi chamado de poliedro. O ruim era descobrir-se dentro de um conto. Toda vez que alguém o lia, achava-se, meio perdido, meio encontrado. Não sabiam quem exatamente acusar, ou elogiar. O ruim, era ver que eram pontos sem nós ou melhor dizendo, com múltiplos nós. O ponto final sempre se perdia dentro da multiplicidade espelhada do próprio e abandonado conto, que afinal não tinha mais dono, tinha sim multiplicidades fracticidas. Identidades fluidas, perdidas. Tinha rostos infinitos, infinitos, que não sabiam bem aonde terminava a criatura e começava o criador.

Pois ninguém sabia decerto, quem era o autor daquele maldito poliedro infinito.

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