terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Sozinho

Meu quarto e meu corpo são uma festa.

Imagine eu inteiro!

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Pessimista Saramago, é o mundo!

Alguns dizem que o que escrevo é pessimista.

Pessimista é o mundo que me obriga a escrever o que escrevo.

E se disserem que o mundo não é pessimista. Direi que não conhecem o mundo; que conhecem apenas, um basculhante de sua própria vida.

Se eles não enxergam e se desobrigam a olhar, sou eu, este filho da puta, a terrível cegueira?

Quem assiste o mundo por jornais ou pelo trajeto insoso do cotidiano, deveria olhar nos olhos da notícia: a pupila das favelas exterminadas cotidianamente, o canto da rua doído e infeliz, a criança cuja criança se perdera em trocados na pausa do automóvel e dos basculhantes!

Mas eles não olham.

E quando eu os faço recordar do extermínio dos pobres, da fome, de gente comendo lixo na ceia de natal. O bárbaro, pessimista e anti-cristão sou eu.

E eles, só olham e rezam católicamente à absolver a culpa de um mundo ruim.

Da próxima vez que disserem que sou eu o pessimista, ao invés de um palavrão, eu obrigo-me a dizer...

Que sádico é a imagem, não o espelho!

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Mas que Natal estúpido

Feliz Natal.

Nos jornais, junto com os pães e os brioches entregues na área nobre da cidade, por algum jovem trabalhador, o sangue escorre pela tinta da matéria em destaque. A classe média não liga, o sangue dos pobres lhe é invisível, mas as promoções no caderno secundário parecem-lhe atraentes.

Feliz Natal.

No canto onde os olhos dos transeuntes não alcançam, no encontro das duas avenidas centrais do centro da cidade, um remanescente do século XIX perambula a procura de comida, de esmolas; os pedestres não olham. Estão cegos com as promoções e os letreiros de natal.

Num cartão de natal, encomendado por um oficial do alto escalão da polícia militar do estado do Rio de Janeiro, e enviado a diversas autoridades, um papai noel aparece fardado e exibe um fuzil ao lado de um blindado apelidado carinhosamente de caveirão. Uma criança negra brinca sobre o blindado. O cinismo é um pré-requisito indicado no terceiro ponto do edital do concurso de acesso à polícia militar; consta em ata e foi lavrado por um especialista em concursos públicos.

No mundo da ficção o natal é diferente. Na ficção chamada favela, especificamente no Parque União, quatro famílias ganharam um presente inusitado: quatro caixões de madeira; o presente foi entregue pela Polícia Militar via aparelho de Estado.

No complexo de favelas da Maré as faixas contra o assassinato de jovens e moradores não precisam ser trocadas, são úteis em qualquer época do ano, reciclam-se apenas os carrascos e os mortos.

De madeira também é feito o presépio que ostenta um dos salões principais do Copacabana Palace. Para apreciá-lo o visitante deve pagar a modesta quantia de 35.520 reais. O pacote inclui acomodações, café da manhã e acesso livre à sauna(seca ou a vapor), à quadra de tênis e permite o usufruto das dependências do hotel no dia da noite de natal.

A consciência fica por conta do hóspede.

Na área mais insalubre da zona oeste da cidade, numa ocupação sem-teto, quatorze famílias não dormem, a ordem de despejo estava prevista para dezembro, mas fora adiada para a primeira semana de janeiro. Pois até os carniceiros precisam descansar.

No corredor de um shopping as pessoas se agitam, os corpos dizem: "nós não temos culpa!" e as mentes apenas apertam os botões.

Na tv alguém diz que o consumo precisa aumentar, na calçada de um prédio dois homens ousam dizer que a pobreza não é culpa da sociedade, mas apenas dos pobres.

Na padaria entre um gole de café, algum iludido ainda acredita no Natal, o cristianismo parece lei, apesar de existirem outras cem religiões.

As crianças se animam por um mito transformado em mercadoria. Papai Noel era azul, até conhecer os executivos da Coca-Cola.

Em alguma fronteira esquecida, entre o asfalto e a favela, crianças se amontoam e vendem balas no sinal; não comemoram o Natal pois não sabem ler, nem os calendários comemorativos nem as datas religiosas.

No século XIV as missas eram rezadas em latim, ninguém entendia além de Deus.

No retrato estampado numa barbearia, a representação européia de Jesus tornou-o branco e ele ganhou olhos azuis. Mas um registro secreto encontrado numa expedição arqueológica no sul da Síria, revelou que Jesus era negro e mulher.

Num depósito de gente e de lixo, um grupo de catadores encontrou sua ceia de natal esparramada no que o capitalismo rejeitou. A noção de higiene não existia na Idade Medieval: os palácios não possuíam banheiros e as fezes eram jogadas pelas janelas; a nobreza era suja, tal como hoje.

Entre a ficção e a realidade, a noção de justiça e humanidade não existem no século XXI, a higiene moral e econômica perdeu-se no bolso de um descuidado, diante da noite do dia 25.

Feliz Natal estúpido, estúpido!


domingo, 21 de dezembro de 2008

O retorno e o agravamento da Ruiva

"Não é preciso dormir para sonhar." Sussurraram.

Acordou. Acordou e estava no bar. Sentara naquele Pub simpático, e por um momento ainda percebia o mundo desfocado. Desfocado enquanto seu aparelho perceptivo adaptava-se de maneira covarde diante do barulho e do mundo, diante das pessoas, do copo de cerveja preta esvaziado, e talvez entre algo que o reflexo de seu copo e sua imagem diziam a si mesmo: "apenas acordou". À penas acordou.

Deve ter sido difícil acordar, assim tão último. Mas ele aprendia rápido.

Acordou. Acordou e fez um acordo, que aquela realidade precisa, extremamente precisa, e por isto doída e maravilhosa, havia de ter um motivo oculto, algo que encadeava fatos, organizava-os e dizia o que no passado haveria de valer a pena, e o que no futuro era o resultado apenas daquele pretérito feio, bobo e que costumava dizer: "era jovem e imaturo demais".

Mas não. No meio do seu pensamento tinha uma ruiva e tinha uma ruiva no meio do seu pensamento.

E ela disse: "Não é preciso dormir para sonhar." E ele acordou. Acordou sem chão, apesar do taco de mogno opor-se às ruivas abstrações.

E ele deveria manifestar-se, socar o balcão, jogar o copo de vidro no chão. Carregar ela para fora ou gritar.

E o que ele disse foi o que se segue adiante, apesar daquele diálogo não se seguir como de costume...

- Eu sempre tive esperança. Eu sempre tive. Porra. Eu sempre tive esperança. (soluçou)

(Lágrimas rolavam...)

A ruiva voltara. Ela voltou. Voltou sem a música francesa; voltou diferente, voltou menos ruiva, voltou de cabelos negros, e ele socou o balcão; como exatamente disse que não faria...

E ela prostou-se. Abaixou a cabeça e possuía um olhar que não era mais o da ruiva original.

Ele não, ele só chorava. E resolveu deixar a conta; com a gorjeta, resolveu esbarrar em duas ou três cadeiras, resolveu chorar em público até a porta do bar, resolveu correr para o estacionamento quando sua vontade só lhe dizia para não fugir, mas para encontrá-la.

E ela, bem ela, resolveu esperar. Pois sabia exatamente, que deveria esperar, sabia exatamente o quão aguardar... E ele, ele, chorou mas por um delicado momento, o momento que lhe roubaram os sonhos, sabia que ela esperaria, mas sentiu medo, sentiu medo, por que seu medo lhe dizia que ela sumiria da mesma forma que apareceu, pois não era preciso dormir para sonhar...

Ela chegou no terceiro soluço, mas ele já estava de pé, no estacionamento, olhava para a baía suja, repleta de polietileno e rancor, ele não chorava, apenas controlara-se e para isso precisava queimar fumo no pulmão, precisava dizer que enfim, cerveja preta era melhor do que cerveja branca.

- Você fez. Ela disse.

- Você fez. Eu vi na Tv.

- É. Eu fiz. Acabou. Chega. Ele fumou, e apagou o cigarro após o silêncio mais profundo em quatro ou cinco anos.

- Eu não queria voltar assim.

(assim como ele pensou?)

- Eu queria lhe mandar uma carta. Mas eles me perseguiram.

- Eu queria falar que tudo o que passou foi um terrível mal entendido.

(ela disse isto? um tiro na cara seria melhor - pensou).

- Um tiro na cara seria melhor, ele falou.

- Eu não mandei nenhuma carta por que eu pensei que você também podia estar com problemas. Eu só fiz o que eu pude fazer. Você sabe.

O silêncio tomara conta do cais. Apesar de não convidado.

Ele tirou os sapatos, jogou-os no mar. Ela não falou nada por que achava que era um falso cognato. Em inglês "adept" significa perito e não adepto. Exemplos.

Ele sentou, e chorou mais uma vez e era a segunda vez que ele chorava assim em anos.

Ela abraçou-o.

Não falaram mais nada.

Nada havia.

Nada poderia ser dito.

A conversa se encerrara.

E ao contrário do saxofone, ao contrário de uma viagem para o norte do Brasil, ao contrário de um apartamento no Catete, ele, não ela, esqueceu o passado, e abraçou-a. Apertou sua mão carinhosamente, enquanto os lábios mudavam, enquanto eles se reencontravam, enquanto ele redescobria seu pescoço, seus cabelos outrora ruivos, enquanto ele apaixonava-se novamente por sob cinco minutos e ela entregava-se.

E entregavam-se. E resolveram não falar, por que era o silêncio que desejavam.

E os lábios já se reconheciam, e nada falavam, além dos beijos, além de encontrarem-se nas esquinas do amor; aquele amor, bandido e original.

Ela amando algo que já tinha se perdido, e ele amando uma ruiva, uma ruiva, que resolveu morrer após o cais, pois ele, Vasilli, pobre Vasilli, não pode aguentar, não conseguiu aguentar e resolveu procurar o anjo, o anjo que levara Anatole, para o viaduto, para o concreto, para o mundo em que não haviam ruivas.

Amou-a. Não o culpemos.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Isabel e eu

"Meu oceano tem 20 cm de profundidade.". O parabrisa, a chuva, a estrada vazia e eu me lembrando de uma noite qualquer, pelo exercício da livre associação. E essa frase nem era minha. Mas isto me fez lembrar a carreira de pó da degenerada Isabel. E é para isso que servem as frases prontas.

Num quarto de motel, um motel com menos estrelas que um sábado nublado e chuvoso, Isabel aquecia-se e inspirava como uma profissional; sua dedicação em manter o ambiente ruim materializou-se às duas e quarenta e três no comentário mais piegas da noite: "Isto foi profundo"- e no fundo ela cheirava, buscando uma porta que jamais se abre.

Ela sorriu, e eu acredito que não pelo meu comentário, mas seus cabelos loiros e lisos, pareciam mais oleosos toda vez que ela jogava a cabeça para trás e apertava o nariz com delicadeza; enquanto ela limpava o nariz, decidiu esfregar parte do pó que restou nos lábios e eu pensei que apesar de triste, aquilo de certa forma era a coisa mais sensual que eu assistia em semanas e eu não via a hora de foder aquela mulher com força.

Eu ficava de um lado para outro, com um ou dois copos de cerveja, dando goladas secas, tentando me encaixar naquele quadro que era só dela; pois no final das contas até mesmo o sexo era para ela, não para mim. Meu cinismo no entanto, acabara vencendo a parada.

E ninguém, salvo poucas exceções era mais cínico do que eu.

Quando ela acabou, eu molhei uma toalha quente, a fiz deitar de bruços, pois o que eu queria era foder ela a noite inteira e vencer aquela merda de cocaína, vencer o traficante, o filho da puta que o indicou, os viciados que a seduziam, e não mais secundário, desejava transformar as plantações de coca em fazendas agro-ecológicas auto-suficientes coletivizadas por agricultores radicalizados no sul da Colômbia.

Uma parte de Isabel, anja Isabel caminhava no quarto procurando outra carreira de pó e parte dela, já estirada com a toalha quente por cima de suas sinuosas costas estava lá deitada na cama recebendo o ato de amor porção única simples-descartável mais sincero que aquele hotel e aquele centro da cidade paranóico e falido já viram.

E quando eu reclamava dos seus maus hábitos, de quando ela xingava o garçom, de quando ela mandava alguém para a puta que pariu ou estourava o vidro da frente do carro de algum babaca mal intencionado no centro da cidade com um paralelepípedo, ela dizia que apenas falava e fazia o que todos pensavam.

"Eu penso e faço, eles só pensam, não me recrimine, eles são iguais a mim, só que eles tem o que perder, eu não."

E eu apagava o cigarro na sola do sapato e sorria, ela e sua lógica possuíam alguma razão.

Não poderia recriminá-la, não era hipócrita.

Esta sensibilidade inédita de Isabel, acabava me seduzindo e eu me jogava com meia garrafa de vodka no seu colo macio. Geralmente a encontrava trabalhando na esquina da terceira avenida, diante da rua mal iluminada; e daquele chafariz vazio.

Às vezes acabava bêbado, mas ela sempre acordava melhor do que eu. Quando ela acordava depois eu costumava sugerir a ela própria que descansasse na minha casa, coisa que nunca aceitava, mas nesta noite, uma noite diferente, ela resolveu sair do motel.

E saímos no meio da noite.

E eu a convenci, convenci de que na minha casa ela poderia tomar um banho quente, que poderíamos assistir o filme do Almodóvar, que poderíamos comer algo melhor do que um sanduíche de carne e que bem, a boca de fumo perto do meu apartamento vendia a melhor coca da cidade.

Enquanto eu dirigia ela fazia sexo oral, enquanto eu descia do carro ela retocava o batom e ajeitava o salto alto com suas pernas à mostra; enquanto eu comprava e pagava o almoço do dia posterior, ela pedia mais dinheiro para comprar mais felicidade. Entramos no quarto e ela por um momento abandonou o velho caminho, e ao invés de cheirar, resolveu me agarrar, por que algum motivo oculto, levou-a à dominar toda a situação. A arranhar todas as minhas costas, enquanto me cavalgava com força e raiva, a ponto de eu precisar me defender de um ou dois socos e retirar discretamente os cinzeiros da mesa de canto da sala.

Enquanto ela dormia, eu fui preparar gim com vodka. Enquanto ela sonhava, eu resolvi trocar sua roupa, e coloquei um pijama que ninguém iria mais usar. Cobri-a carinhosamente com meu edredon, joguei fora todo o pó sobressalente, limpei o cinzeiro, abri a gaveta e joguei meu diário lá dentro.

Dormi ao lado de Isabel, cuja vida doída não impedia ao contrário das princesas de vidro, das meninas tons pastéis, que possuísse uma sensibilidade que extrapolava seu comportamento ruidoso.

Isabel era um oceano turvo e profundo... Mas que me cativava pelo que era, assim, inteira.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

É preciso se desencontrar para permanecer sozinho

Gosto de dormir no lado errado da cama; como e se houvesse o certo...

Jogo meu corpo, ocupo meu espaço desajeitado, balanço os meus pés, quase como se pudessem encontrar outros pés; movo minhas mãos, da esquerda para a direita, buscando-a, mas ela não está lá. Ela nunca está.

Gosto de usar óculos escuros no outono, no mormaço. Gosto de esconder-me e meus olhos, pois sou transparente demais.

Caminho entre o os transeuntes, observo e admiro os casais, acho graça e até me envergonho, e me emociono, quando aquela amálgama de desejo e simplicidade resolve traduzir parte de mim, numa estação de metrô, num beijo estalado no canto do pescoço(um outro pescoço) e acabam me revelando, assim meio tenso, meio apaixonado e sem paixão, um caminho iludido.

Gosto de pagar a passagem com moedas e sentir-me altruísta. Gosto de beber suco de laranja depois do almoço e gosto de ficar sozinho; comigo mesmo, pois ficar sozinho com outras pessoas, não é lá muito agradável.

Recorto os paralelepípedos, desligo os ventiladores, sinto saudades dela, aquela mesma, que nunca apareceu; almoço sozinho.

No encontro soturno da memória com o desejo, algo cai perdido por detrás do móvel da sala: aquele telefone não retornará, mas afinal não era preciso, se o fosse, o destino se encarregaria de reescrevê-lo numa sorveteria do centro da cidade, com um sorriso ruivo com gosto de creme.

Flanqueio-a e ela nem sabe que eu o faço, abraço-a e ela nem sente meu toque. Leio o Neruda mas ela não ouve.

Beijo-a e toco seus lábios carinhosos, meticulosas salivas que nunca se encontraram; sonho.

Não observo mais ninguém. Desisti nas estações e no ritmo do metrô.

Um recado escrito a lápis, colocado sabe-se como num bolso vazio, escrito em papel cartolina roxo indica:

"E por ser transparente demais, e por não estar de óculos no mormaço, por procurá-la cotidianamente no lado errado e no lado certo da cama, busco-a, e é por isto que ela nunca, nunca me encontra."

"Pois é preciso se desencontrar para permanecer sozinho", é o que eu anoto e completo no verso laranja do recado misterioso.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Sombras fugazes de um corpo com memória.

Numa caixa um segredo, num segredo uma caixa.

Ele não conseguia escrever, mas num dia específico, tentou se matar às duas e dezenove em cima de um viaduto cinza e alto, e aí, aquele ser de asas apareceu.

As pernas balançavam naquele parapeito improvisado, era dezembro e o mundo estava triste, mas as pernas moviam-se felizes entre o abismo de concreto e o concreto abismo que havia, fazia, dançava e carregava dentro de si.

Ele cantava uma música solitáriamente; não havia coral e ele não estava bêbado. Estava feliz por ter se decidido. Mas o pior era a angústia. A felicidade da decisão superava seu podre resultado prático. Decidir livrava-o do peso do espelho perfeito do mundo.

A música não.

A música não escolhia, mesmo com os poucos acordes que lhe faziam suficiente; ela se fazia naquele lábio gelado de final de noite, ou por sob o concreto quente do parapeito. Talvez teria de se haver a tocar em algum táxi no canto mais desagradável da cidade.

O anjo ao contrário, se entristecera. Apagar o último cigarro levara-o à pura e simples melancolia e estagnação. Ajudar um infeliz no domingo à noite não era um trabalho de anjo, era um trabalho sujo, mal remunerado.

Fizeram um acordo. Ele não diria para ninguém que conversou durante quarenta e cinco minutos com um anjo imaginário; até por que não acreditariam, e o anjo, este pedaço de imaginário vivo, resolveria o problema sob o molho da modernidade, ou seja, enfatizaria o desperdício do tempo perdido.

No final do cigarro - enfatizou com uma voz grave de insônia e pigarro - , você pula!, ou desce essa porra de viaduto comigo!

Era um anjo com os culhões escaldados, na verdade se as minúcias e os pormenores afetivos permitissem, levaríamos a crer que era um anjo bem filho da puta: um anjo de segunda, ou terceira categoria. Um delicioso e desperdiçado gigolô cristão.

O primeiro que achar sua caixa, avisou o anjo com repreensão nos olhos, descobre o seu segredo e o caminho que leva a uma artéria complicada, que liga os fatos da vida ao coração. Portanto tenha cuidado.

Não deixe esta caixa em domínio de alguma mortal.

Qualquer um(a) que domine tal artéria, pode lhe colocar em maus lençóis. Transformar-lhe de corpo físico à memória, de parênteses à parágrafo. Não dê a caixa para ninguém, avisou o anjo.

Você não é um neurocirurgião, avisou.

Jezebel nunca tentou se matar, mas suas roupas e sua música preferida, seu comportamento cínico diziam, matava-a pouco a pouco, mesmo sem anjos e também assassinava seus amigos, que odiavam ver seus espelhos. Tinha um corpo esguio; magro. Preto eram seus cabelos e branca sua alma, alma que interessou de imediato o mesmo anjo sem asas que procurou-a com a mesma convicção e cinismo com que procurara o desperdiçado à beira do viaduto.

Jezebel mentia para si própria. Jezebel bebia gim, fumava erva, e namorava um conhaque nas terças-feiras. Jezebel conhecia o segredo dos outros mas não de si própria, permanecendo obscura conseguia preservar exatamente a artéria que ligava o coração a si própria.

O anjo, este ser mal remunerado e infeliz, reprovara-a; mas nesta noite estava completamente bêbado e sofria de um amor platônico mal resolvido. Anjos também sofrem. Amém.

Mais Jezebel sobrevivera, sobrevivera mesmo sofrendo uma peça pregada por deus, o todo poderoso. Sobrevivera a ponto de convencer o anjo à uma segunda conversa e este dizia, dizia, dizia, e falava, e exclamava com as mãos, algo que para ela, parecia-lhe natural e augusto.

A intocável artéria proporcionava-lhe voôs sem asa, ou na linguagem terrena, orgasmos simples, porres de cerveja, uma carreira de pó certificada pelo INMETRO e sim, aquele esbarrão pretensioso, no viaduto cinza, no babaca de preto, no idiota, o da caixa de segredos, que por um motivo ou outro insignificante, resolvera se matar próximo à Jezebel, e que por fim trazia-lhe algum sentido sobre o parapeito muito pretensioso.

E aí Jezebel, a ingênua degenerada, como assim lhe cabe a história, procurou em quarenta minutos a caixa de segredos. A caixa de segredos que estava em seu bolso, súbitamente revelada por um sorriso de canto de boca, não evitou o salto do artista, mas possibilitou que o anjo e ela, pudessem conversar sobre surrealismo e sofrimento durante grande parte da noite.

E assim entendiam da natureza humana. Jezebel, Anatole, Jezebel, Anatole. Anatole, Anatole.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Da série: Frases fodonas que eu gostaria de ter dito

"Deus está morto, mas [...] teremos de vencer também a sua sombra." (Friederich Nietzsche)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O retorno para casa

Inicialmente era um ateu bem decidido, um ateísmo que não lhe incomodava e até resolvia comportar-se mal em festas de aniversário, somente as que mereciam verdadeiramente serem implodidas. E seriam reveladas ou com um discurso escatológico que ofendia metade da família, ou com alguma atitude desprezível jamais recordada.

Fora devido as seguidas ironias, ou melhor, situações limites, onde o ridículo se apresentava como realidade, que ele fizera-se suspeitar que deus sim existia. O canalha existia e costumava brincar de poesia. Esta reflexão profunda e importante, acompanhou-o durante uma dor no fígado que o fizera vomitar quatro vezes na segunda metade do mês de setembro: as contas estavam atrasadas e a lasanha infelizmente, encontrava-se poéticamente no forno, aquecida sob a diarréia metafórica.

Brincava como um anão de circo cuja metástase em algum dos membros inferiores ou superiores o levara a produzir um libido impotente e que fazia-se necessário, no choro acobertado pela mulher barbada ou pelo engolidor de espadas acusado de homofobia. Injusto.

Numa situação limite apresentava-se uma coincidência impossível, um azar imprestável no sábado a noite, ou algum objeto que caído produzia vida e machucados na sexta-feira; uma sexta fácil de ser vivida, mas que com a presença de deus, este grande inimigo, as facas, as colheres e até mesmo as lembranças escondiam o veneno: era a peste se manifestando imprevisívelmente.

Deus a peste, sob luzes vermelhas, uma peste presente, um corte na sola do pé, um ex-namorado endiabrado ou até mesmo um telefone que modificava e deformava todo o conjunto da obra.

Deus era o satã de gente fudida.

E eis a lona da vida: ridícula, mas adequada. Adequada ao medíocre que se estabelece sem dúvidas, e a si mesmo entoa o mantra de inúteis seiscentas repetições de promessas que jamais serão cumpridas.

Verificando empíricamente, temos neste exato momento quatrocentas e treze promessas não-cumpridas que alimentam cento e dezesseis proprietários de pequenos estabelecimentos operários e periféricos panegíricos cuja venda de álcool é assim, normal-normal.

O cinzeiro largado na quinta ou na sexta música, tornava-se óbviamente a parte cênica de seus pequenos desastres, ainda que lhe chutassem seus joelhos num dia de raiva. Mas também havia a música costumeiramente melancólica, as guimbas nas latas, a vodka pela metade, o sofá vinho, a cortina bege-limão e o calor, e a chuva, todas, apropriadamente ociosas.

Havia o ovo solitário da porta de geladeira, cujo diálogo com a cerveja produzia algum aspecto de solidão que refletia-se na pupila de Vasilli, o observador e colecionador de latas de cerveja e espectros de agonia, cujo ovo refletido na córnea direita, dava-lhe a impressão de ser mais poderoso que deus.

Mas isto acabava quando abria a geladeira e a si mesmo com força. E esbarrava em algum talher ou copo e produzia barulhos que incomodavam as memórias e os ouvidos ocultos e cultos de seus pais.

Deus ainda falava, decerto bêbado, cuja vontade resolvia compor cigarros na praça Tiradentes às duas da manhã, sem que ninguém ouvisse ou observasse aquele ser desprezado, tomar a carroça de deus, rumo ao olimpo.

O ateísmo voltava às quatro da manhã e sob seus ombros, responsabilidades, papéis, burocracia, e enviados de deus. A dor no fígado e a introspecção chegava às cinco e quarenta. O ônibus, com o guichê, a porta de supermercado e as leis do banco não aparecia antes do pôr do sol, que se afastava dele próprio às sete da manhã, já vencido pelos cigarros e por deus.

E foi assim, assim quase no princípio, que a estrutura social da civilização pareceu-lhe súbitamente, absurda; tremendamente absurda, pois deus, deus existia e resolvera existir, de uma hora para outra.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Hagiografia de pecadores

Júlia queria viajar para o Uruguai e levar a vida junto. O país recortado por fronteiras imaginárias e que nunca existiram esperou.

Renato, com uma ansiedade menor que o preço da passagem, aguardava um ônibus sujo, numa madrugada imunda do dia dezessete de um mês ruim.

Alessandra queria terminar uma poesia e só precisava de uma idéia ou de uma caneta, mas só tinha o número da conta do banco no bolso.

Miguel, transbordava emoção no centro da cidade, e seguia evitando as linhas de uma calçada no cruzamento da rua Ouvidor.

O sorriso de Augusto falava por ele; quando encontrava Luisa, seus dentes não acertavam o compasso.

Nicolai esperava alguma coisa acontecer, mas só lhe chegavam desejos impossíveis e balas de mascar nos ônibus mais desconfortáveis.

O coração de Joana guardava Felipe em um de seus cômodos mais aconchegantes, mas Enrico ainda tinha um esperança que o inquilino atrasaria o aluguel.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Pesadas Perdas

Edith Piaf perdeu Marcel Cerdan. E compôs a música mais bonita sobre o amor e que se possui notícia em língua francesa.

Florbela espanca apaixonou-se e frustrou-se repetidamente, até seu suicídio, mas seus poemas não se suicidaram, ainda vivem, apesar de tristes.

Ian Curtis se matou, pois amava duas pessoas, menos a si próprio, ainda deixa alguma tristeza em forma de música, tristeza que guardou aquele momento, e a si mesmo dentro de alguns acordes poéticos .

Augusto dos Anjos perdeu um filho e morreu jovem de tuberculose.

Fernando Pessoa foi-se triste. E em algum lugar da cidade, alguém chora por um namoro abortado; que nem começou.

Extremamente dependentes da tristeza alheia, nós vivemos, assim, olhando a tristeza alheia, apenas para nos compensar a felicidade que afirma-se sob o pesado véu; este véu, sempre do outro.