quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O retorno para casa

Inicialmente era um ateu bem decidido, um ateísmo que não lhe incomodava e até resolvia comportar-se mal em festas de aniversário, somente as que mereciam verdadeiramente serem implodidas. E seriam reveladas ou com um discurso escatológico que ofendia metade da família, ou com alguma atitude desprezível jamais recordada.

Fora devido as seguidas ironias, ou melhor, situações limites, onde o ridículo se apresentava como realidade, que ele fizera-se suspeitar que deus sim existia. O canalha existia e costumava brincar de poesia. Esta reflexão profunda e importante, acompanhou-o durante uma dor no fígado que o fizera vomitar quatro vezes na segunda metade do mês de setembro: as contas estavam atrasadas e a lasanha infelizmente, encontrava-se poéticamente no forno, aquecida sob a diarréia metafórica.

Brincava como um anão de circo cuja metástase em algum dos membros inferiores ou superiores o levara a produzir um libido impotente e que fazia-se necessário, no choro acobertado pela mulher barbada ou pelo engolidor de espadas acusado de homofobia. Injusto.

Numa situação limite apresentava-se uma coincidência impossível, um azar imprestável no sábado a noite, ou algum objeto que caído produzia vida e machucados na sexta-feira; uma sexta fácil de ser vivida, mas que com a presença de deus, este grande inimigo, as facas, as colheres e até mesmo as lembranças escondiam o veneno: era a peste se manifestando imprevisívelmente.

Deus a peste, sob luzes vermelhas, uma peste presente, um corte na sola do pé, um ex-namorado endiabrado ou até mesmo um telefone que modificava e deformava todo o conjunto da obra.

Deus era o satã de gente fudida.

E eis a lona da vida: ridícula, mas adequada. Adequada ao medíocre que se estabelece sem dúvidas, e a si mesmo entoa o mantra de inúteis seiscentas repetições de promessas que jamais serão cumpridas.

Verificando empíricamente, temos neste exato momento quatrocentas e treze promessas não-cumpridas que alimentam cento e dezesseis proprietários de pequenos estabelecimentos operários e periféricos panegíricos cuja venda de álcool é assim, normal-normal.

O cinzeiro largado na quinta ou na sexta música, tornava-se óbviamente a parte cênica de seus pequenos desastres, ainda que lhe chutassem seus joelhos num dia de raiva. Mas também havia a música costumeiramente melancólica, as guimbas nas latas, a vodka pela metade, o sofá vinho, a cortina bege-limão e o calor, e a chuva, todas, apropriadamente ociosas.

Havia o ovo solitário da porta de geladeira, cujo diálogo com a cerveja produzia algum aspecto de solidão que refletia-se na pupila de Vasilli, o observador e colecionador de latas de cerveja e espectros de agonia, cujo ovo refletido na córnea direita, dava-lhe a impressão de ser mais poderoso que deus.

Mas isto acabava quando abria a geladeira e a si mesmo com força. E esbarrava em algum talher ou copo e produzia barulhos que incomodavam as memórias e os ouvidos ocultos e cultos de seus pais.

Deus ainda falava, decerto bêbado, cuja vontade resolvia compor cigarros na praça Tiradentes às duas da manhã, sem que ninguém ouvisse ou observasse aquele ser desprezado, tomar a carroça de deus, rumo ao olimpo.

O ateísmo voltava às quatro da manhã e sob seus ombros, responsabilidades, papéis, burocracia, e enviados de deus. A dor no fígado e a introspecção chegava às cinco e quarenta. O ônibus, com o guichê, a porta de supermercado e as leis do banco não aparecia antes do pôr do sol, que se afastava dele próprio às sete da manhã, já vencido pelos cigarros e por deus.

E foi assim, assim quase no princípio, que a estrutura social da civilização pareceu-lhe súbitamente, absurda; tremendamente absurda, pois deus, deus existia e resolvera existir, de uma hora para outra.

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