segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Seu coração era um cinzeiro


O cinzeiro estava cheio de guimbas, de cinzas, de lágrimas. Seu coração era um cinzeiro. Latas de cerveja vazias, alguns cubos de gelo derretendo em cima da pia. A cozinha estava suja.

Evitou-a fumando um cigarro na sala. Abriu a janela, viu a lua, parcialmente escondida , parcialmente exposta. Livros amontoados na sala, cd's velhos, um sofá com um rasgo em um dos assentos e uma garrafa de vodka metade vazia e metade cheia(de hábitos).

Enfrentaria seus fantasmas com as gengivas sangrando se for necessário. Não tinha medo da dor. Aprendera boas lições com o passado, aprendera boas lições e tragaria o último gole de esperança com um pouco de coragem entre os dentes. Chafurdaria-se nas lamas do inconsciente. Iria até o fundo se necessário. Não tinha medo da tempestade. Era um desbravador. Tornaria-se o que era, o que é. Iria se buscar nos abismos emocionais, iria resgatar-se do limbo, iria salvar a si mesmo. Seria seu próprio redentor. Sua redenção do-it-yourself embalada em embalagem a vácuo.

Por enquanto, apesar do discurso, possuía apenas uma vidinha medíocre e contas a pagar; sem nos esquecermos da lasanha políticamente incorreta que guardava no congelador há meses.

Olhava para a mesa de vidro e seu reflexo. Sentiu vontade de chorar. Escorregou do sofá e sentou no chão, cruzou as pernas, apagou o cigarro e enquanto tamborilava os dedos na mesa, pensou em não-agir. Em não pensar. Era preciso se encontrar. Era preciso parar e não pensar.

As coisas ferviam lá fora. A maldade tinha lhe encontrado em duas ou três ocasiões, mas conseguira esquivar-se. Estava vivo e expectativas demasiadas só traziam problemas demasiados.

Contentaria-se com o pouco. Este era seu plano. Habituar-se com o necessário. Sem excessos. Sem excessos, sobreviveria. Café, alguma erva, cerveja e livros. Nada mais.

No quesito afetivo, seguiria a mesma recomendação: casos esporádicos, afetos ocasionais, sem compromissos, sexo casual, nada mais.

Era um bom filósofo de bar. Também não almejava muito além. Algumas cervejas e janelas de ônibus, serviam-lhe farto material filosófico; sentia-se feliz.

Na segunda tragada começou a sorrir. Era curioso, considerava-se um péssimo ator, e normalmente era. Mas quando do caos interno e introspectivo feito em maiores graus que suas máscaras, o lodo aflorava.

Pegou o metrô, escorou-se em uma das portas, lembrou de Paris, da Catalunha, lembrou da Av. Presidente Vargas. Desceu as escadas, olhava as faces ocultas, tentava adivinhar o que pensavam de si próprios, o que pensavam dele e o que pensavam da vida. Ao chegar na rua da Alfândega, ficou costurando os transeuntes como de costume, era um bom esporte, salgados chineses, pessoas na rua, panfletos que jamais pegava, sextas-feiras repetitivas.

No Largo de São Francisco sempre esbarrava com uma alma incauta, um espírito do Rio novo, do Rio pós-moderno, da nova pútrida modernidade enciumada e encolerizada como de costume. Suas máscaras afloravam, consumidas por doses de café. Olhos fixos, sem açúcar e uma ligeira dor de cabeça o conduziram até casa.

Chamaremos aquela doce imundície de casa.

E quando olhou para aquele quadro velho, no intervalo dos comerciais da agradável insônia da madrugada, teve vontade de pintar, de fazer poesia, de cantar, mas nada aquilo aquietaria seu espírito. Bastava se retomar, perder-se dentro de seu caos, e fulgurar diante do nada com os desejos explodindo sua epiderme. Havia caos, havia luz, havia um pedaço de vida diante da morte programada e ele não se eximiria mais do seu destino. As cinzas cimentavam o novo caminho.

"É um "pessimismo-realista" que me motiva a viver." disse a si mesmo. Como assim? Há contradição nesta frase. Há sim. Há sim. Há muita contradição na vida. E no momento. Neste parágrafo, deste momento, ele pensava em continuar. Por que continuar era a única coisa que aprendeu a fazer em todos estes anos.

Agradecimento especial à Helena Dantas e seu poema que me inspirou o título acima.

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