quarta-feira, 2 de julho de 2008

Os Sonhos de Rafael

Não chovia, não estava muito frio e nem mesmo havia uma grande tragédia a se alimentar. Retomou velhas proposições e a reflexão tímida que iniciou há semanas provocara um acontecimento curioso que despertara em si próprio quase uma epifania: começou a ter flashes oníricos.

O que significava?

Que a partir de certo momento, começara, e tal coisa lhe acontecia esporádicamente em um número de vezes incerto ao dia ou na semana, a lembrar de fragmentos de sonhos antigos, muito antigos.

Inicialmente eram flashes. Lembrava de paisagens, cenários, como a fotografia de um filme.

Com o passar dos dias, profissionalizou-se e já podia recordar de pequenos trechos, mas faltava a textura, o sonhos permaneciam nublados. Não conseguia apenas obter relação entre a lembrança e o dispositivo que a provocou: pois bem, podia ser provável que os flashes não se incluíam num mecanismo de causa e efeito, mas continuava a ser um acontecimento paradoxal que clamava sentido.

Precisava ir mais fundo, anotar seus sonhos era um propósito nobre, uma aventura instigante: a escrita registraria, poderia retomá-la como à um catálogo e a cada flash súbito conjecturaria a partir destas minuciosas descrições de seus sonhos, o que o sonho lhe dizia. Anotaria dados, cores, horário, datas, acontecimentos relacionados, e teria em mãos o seu próprio dicionário onírico.

Poderia compreender e estabelecer relações entre seus aparecimentos e a realidade que os correlacionavam... Pensou em fazer isto na quinta, depois de um esbarrão provocado por um flash, um pequeno incômodo casual, que não iria se repetir.

Aprofundadas as visões, os trechos iam afluindo considerávelmente, quanto mais vívidos e longos, mais heterogêneos e antigos os sonhos eram...

Aprofundavam-se e ele sentia que algo emergia, algo de novo. Mas nem sempre a mudança é cousa boa. Vivia mudanças de humor, de personalidade e até de valores que se faziam sentir mais fortes e independentes desde que o processo se iniciara há nove semanas.

Olhava para as estrelas há noite, bem antes de dormir, estrelas que não mais existiam segundo a ciência, pois só lhes restava a luz que cá nos chega e para elas só lhes resta quem cá lhes olha.

Contudo, assim como seus sonhos que também não existiam, sonhos que já foram mas que são acontecidos, eram acontecidos que viviam! Acontecidos que retorcem e lhe impõe a existência, opondo a presença do presente ao passado!

Olhou para as estrelas e elas estavam lá! Olhava para seus sonhos, nítidos cada vez mais nítidos, pedaços viravam trechos, que viravam histórias... que viravam realidade...

Os sonhos aumentaram. De intensidade, cor e emoção! E aí fora um passo, para irromperem os pesadelos, e já não conseguia mais caminhar na rua. Todos os sonhos que ele achava mortos ou esquecidos ressuscitaram, um por noite de vida, um por noite de sonho, e aí não conseguia mais andar, pensar, comer, viver... Os sonhos outrora "esquecidos" pesavam-lhe as costas.

A realidade eram seus sonhos, seus sonhos agora eram a realidade, não conseguia mais mover seus músculos, caminhar, pensar, raciocinar, enxergar. Definhou...

E por fim sonhou que lhe faltavam os pulmões. E não conseguiu mais respirar.

Rafael morreu assassinado pelos seus sonhos.

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