terça-feira, 25 de março de 2008

Não há mais mangas no quintal

"O homem é a natureza tomando consciência de si própria. " (Elisée Reclús)

Meu quarto fica no final da casa. É um quarto quente e um pouco abafado, estreito, com raios solares que não o esquecem durante todo o dia. Atrás do meu quarto, há um gramado simpático.
E neste gramado, há uma mangueira. É uma mangueira deveras libertária, ela nunca respeitou a ficção da propriedade privada; parte de sua frondosa copa avançara impiedosamente sobre o terreno da casa onde moro, alguns galhos atrevidos na verdade, galhos que quase tocam o chão, onde podíamos tocar as mangas com os dedos das mãos preenchiam parte da parede que segue cartesianamente até o final da casa. A casa termina, a mangueira não.

Seu caule está prostado no terreno do vizinho, ele faz o que quiser com a mangueira; se quisesse matá-la poderia ter feito, mas por bondade ou preguiça, ela ainda vive, e eu sou de certa forma grato por isto.

Haviam mangas espalhadas no quintal, muitas. Mas para dizer a verdade, eu nunca experimentei nenhuma delas.

Sempre que um vento do norte atingia o terreno, as mangas despencavam. Mangas suicidas. Eram tantas, que enchíamos baldes, galões de manga e só eu sei o que eu sofri para catar todas as últimas que caíram.

No início não incomodava muito. Eram só frutas. Mas aí começaram a cair os galhos e as folhas. E caíam exponencialmente.

Incomodado fiquei realmente, quando encontrei suco de manga na geladeira. Mas não era da mangueira. Não daquela, talvez de uma prima distante. O suco estava numa embalagem industrial; aquilo era uma contradição explícita, a mangueira tinha razão, eu não tinha a mínima consciência ambiental.

Minha mãe também não. E mandou podar a mangueira.

No início achei razoável. Cortar umas arestas sobrando daria vida nova à mangueira, quisera eu poder fazer o mesmo. Mas no dia da poda eu me entristeci, pois percebi que estavam cortando além da conta. E a conta era do tamanho do horizonte da minha janela.

Deitado na cama, eu conseguia enxergar a mangueira e uma outra árvore, cujos limitados conhecimentos arbóreos não conseguem nomear, mas posso dizer que é uma árvore mais disciplinada, cresce e conforma-se perpendicularmente ao solo, seus galhos são curtos, seu caule é longo e ela não atrapalha a disposição matemática daquele jardim, construído, diga-se de passagem.

A mangueira tapava todo o horizonte, e ninguém consegue construir horizontes com facilidade, contudo após a poda o horizonte que ela tentara esconder, revelou-se de imediato, tomada por um golpe de mágica. A tristeza da poda, e como foi triste ver seus galhos serem levados abruptamente, deu lugar a uma observação detalhada, um compasso delicado sobre a natureza; uma verdadeira e detalhada observação do fluxo natural das coisas.

Não existia grama embaixo dos galhos da mangueira pois o sol não chegava ali.

Não existia horizonte nos meus olhos antes da poda; eu só enxergava os galhos e o verde da mangueira, este era meu horizonte, enquadrado por uma janela e perseguido por uma mangueira. Mais do novo horizonte, surgiu a vida, lentamente construíndo-se em torno de metáforas e de natureza.

Mas antes de continuar a falar sobre a mangueira, eu preciso falar daquela árvore que eu desconheço o nome e está plantada mais próximo a minha janela. Em um dia de insônia o vento a balançava suavamente. A árvore não lutava contra o vento, assim como o leito do rio não luta contra as pedras que o cortam. Outro dia, percebi a árvore parada. Não ventava e ela não se mexia.

ELA NÃO NEGAVA SUA PRÓPRIA NATUREZA.

Voltando a mangueira, a grama comecou a crescer, o horizonte se ampliou. Não lamento muito mais por ela. Por que agora posso enxergar o céu como jamais pude da janela do meu quarto. E quando o céu está chuvoso, e eu adoro os dias chuvosos, levanto-me da cadeira, paro de escrever, debruço-me por sobre a janela e olho para aquele horizonte cinza, e cinza não é uma palavra adequada e nenhuma é, para traduzir o que é este horizonte nesses dias.

E eu não consigo escrever quando isto ocorre.

Por que seria mesquinho demais falar de mim, somente de mim, quando me sinto completo e perdido na imensidão do todo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Porra cara com tanta manga beber suco artificial é foda hein.

Fernando Beserra disse...

A poda como sublimação da tempestuosidade da natureza.. uma organização nova onde não é possível determinar: onde termina ou começa a natureza bruta e a modificação cultural do homem...

É a pode uma nova organização quintalesca-revolucionária? Nem mangueira gigantesca e primitivista, nem tampouco o corte total da natureza para botar um computador para ver mangas virtuais..