quinta-feira, 8 de novembro de 2007

São setores Urbanos

Vasilli precisava parar. Respirar. Sentir o oxigênio invadir seus pulmões com força. Precisava de anestésicos naturais, de ansiolíticos homeopáticos, ao invés de álcool barato, mas ainda não se "iluminara" suficientemente.

Cruzara a Gomes Freire com a esquina da Mem de Sá, desviando-se de calçadas ruidosas e pedestres silenciosos que contornavam os carros estacionados, contornavam a si mesmos já vencidos pelo fazer-se pragmático e prático dos atores urbanos.

"Velhos problemas, velhas soluções", comentou consigo mesmo em tom fatalista.

O nome do bar era "Casa da Cachaça", históricamente falando tinha lá sua importância, tal como a Rua Tonelleros; e qualquer merda de rua possue importância se algum burocrata do MEC ou da prefeitura entram em conluio, assim como a rua Carlos Lacerda, aquele filho da puta de extrema direita, de extrema direita sim, que Vasilli era obrigado a passar próximo às terças e quintas.

O mais importante no entanto, era realmente poder sentar nas fronteiras da Lapa, na parte externa ainda sem glamour, ainda não revitalizada(e que bom) sem ser importunado por meia dúzia de conhecidos, o que particularmente costumava detestar quando desejava a paz. A ansiedade lhe corroía, e isso pareceu atrair rápidamente o garçom; e seja como for que realmente tenha acontecido, o fato importante é que pediu uma cachaça de maçã: "pra aquietar o espírito" brincou em um tom simpático e jocoso que poderia ter sido proferido por alguém, no mesmo bar, há sessenta anos atrás.

Era uma frase senso comum, corrigia-se segundo este racionalismo chato que o atacava vez ou outra, que transformava padrões em padrões e tirava o significado oculto das coincidências, um milhão e setecentas mil coincidências ocorridas em uma semana sem explicações, transformadas em simples acaso, em simples "fora das probabilidades", "exceções". Ciência e estatística de merda.

A mesma que insistia em negar o mistério do desconhecido em prol de uma lógica moribunda, acabava com o abismo e trazia-lhe uma colher, um relógio ou uma aparelho de endoscopia importado da Coréia do Sul.

A ciência era um burro com uma cenoura amarrada, que jamais consegue alcançar-se! Eis a ciência contemporânea. Perdida em vazios que ela mesmo criou. Perdida em sua própria ansiedade.

E nem me fale em ansiedade. Vasilli contava seus trocados e esboçava profundidade em divagações, cigarros e sorrisos; todos óbviamente de duvidosa qualidade.

- A ansiedade é doença da modernidade. É da modernidade, esta merda de modernidade!

- Filha legítima!

Gritava, mas ninguém escutava, fantasmas e murmúrios desfilavam por entre os goles de cerveja.

A música lhe irritava, era uma mistura mal-sucedida de uma tentativa abrasileirada de um pop inglês de baixa qualidade, que o levou a tragar todo o resto da aguardente com vigor de um bêbado semi-profissional. Meu equipamento mental está totalmente viciado - assumia.

Somos viciados. Estamos condicionados como ratos, vagando por cidades sujas, respirando merda, sim respirando merda flutuante, exalada por fábricas imundas, símbolos fálicos flamejantes com rodas e outras porras com néon. Plástico, neon, essas merdas, que constróem templos do dinheiro, do consumo, reunindo cada vez mais ratos, que se aglutinam em torno de luzes, como aquelas vespas estúpidas que rodeiam luzes em dias de verão.

Templos do dinheiro, templos de deuses que vendem cocô misturado com amianto, seguidores mentecaptos, ovelhas e pastores, estética, estética, estética. Gritada, vociferada, por sob os escombros da roda, roda suja de sangue, engrenagens de um vazio: um vazio dinheiro.

Há uma ânsia por destruir, por construir.

A ânsia destruidora é uma ânsia criadora. Com explosivos o suficiente eu explodiria um prédio na avenida central, um templo do consumo durante a noite e evitar-ia milhares de moscas rodearem edifícios semelhantes por no mínimo cinquenta dias com otimismo, um tempo necessário para a mídia construir e instituir novos medos, vender, e enlatar sessenta e cinco ou sessenta e oito produtos pús-modernos que não precisamos. Riu da última divagação: era raivoso demais e ele nunca viu nada mais explosivo do que óleo diesel ou gás de cozinha, talvez até fogos de artifício, mas lhe sobrava ímpeto e a volúpia guardada pelos outréns.

Mais uma garçom!

Lembrara e observava com desdém, alguns atores baratos, criaturas suburbanas que vagueavam fantasiados de revoltados demodé. Não há nem mais romantismo nessa cultura urbana! A cultura urbana fracassou!, está morta. Enterrou-se sozinha. E estamos lutando para dividir seus espólios. O funeral no entanto, não acabou!

A rebeldia não está na imagem, na imagem só há ficção. Com polietileno, metal ou gel de cabelo eu conseguiria atrair todo o ódio de uma festa de primeira comunhão no bairro de Laranjeiras.

Escoteiros se ofendem até com caretas.

Sem as células, sem a porra das células, o tecido já estaria morto. Sem a merda da organização vamos vaguear como bostas. Riu de si mesmo, por que tudo fora do contexto poderia parecer realmente pior do que era, foi por issso que acendeu o segundo cigarro e pediu uma cachaça sabor-banana para fechar seu apetite de vez e torcer para que o sono viesse no princípio do terceiro trago. O garçom evidentemente não gostava, e ele deixava claro quando demorava, ou ignorava os sinais, os gritos, os sussurros inertes, porque cachaça segundo a episteme da gloriosa casa-receptora-de-droga-legalizada-pelo-governo é a que é feita de cana, a de açúcar, a de cinquenta escravos fugidos queimando a casa, o senhor do e o próprio engenho em 1793, antes das Antilhas fuderem a porra toda. Mas ainda restava o Haiti que era um exemplo corajoso; não racionalizaria novamente, se o garçom por princípios epistemológicos obrigasse-o a racionalizar alguma coisa, apenas diria que a cana possui um passado vergonhoso, mas no fundo no fundo o que estava na ponta dos culhões era dizer que a cachaça de maçã era mais gostosa.

O sono não veio. Algumas coisas temos de provocar, não é mesmo? Pensou, antes de observar o terceiro ou quarto grupo de revoltados demodé desfilar por entre as esguias calçadas(seguida de um brinde e um olhar carinhoso para a demodé da terceira fila apesar de Vasilli não estar vestindo a fantasia adequada para o intento afetivo).

Algumas das fantasias usavam óculos quadrados, vestiam roupas encomendadas, americanas, européias, rebeldia vestida; desfilavam-se, costuravam-se cheios de couraças.

Devem cagar Almodóvar no café da manhã. Riu solitáriamente da própria piada, o garçom entenderia, pois era engraçado, ele e a piada. Começou a enumerar o que deveria fazer na próxima semana: estava cheia, cheia de compromissos, vamos mudar o mundo!, dizia em silêncio, vamos, vamos mudá-lo, vamos, vamos correr, e aí ofegava, e parecia um miliciano da guerra civil espanhola, deslocado do tempo e do espaço, e aí bebia a cerveja com mais vigor, era aí, e exatamente aí que uma descarga de adrenalina percorria os brônquios que dilatavam, e aí, lembrava-se de Kafka, Bukowski, Cortázar, Neruda, Pessoa; e a cerveja vinha com mais força e aí, especificamente aí, os sobrenomes de algumas aftas emocionais apareciam por tabela.

Enforquem metade dos publicitários e já teremos um bom começo. Pensou baixo, por que atacar pessoas não era seu intento, gostava de esmagar posições, falemos baixinho - mas ninguém resiste a uma misantropia de vez em quando, é algo de tão bom tom em qualquer situação, desde que se consiga parecer irônico, mesmo com uma péssima má fama.

Odiava os misantropos que levavam sua misantropia realmente a sério, pois eram os primeiros a pedirem abraços em dinâmicas de grupo de psicoterapia; era tão óbvio quanto os ratos se aproximando das luzes de neon, dos óculos quadrados, das calçadas esguias e de todo aquele padrão e aquela fantasia criada apenas para incentivar perfis de consumo e torná-los "especiais".

"Para incentivar perfis de consumo." Falou alto, repetiu mentalmente, bebeu o último gole, amassou o cigarro na mesa de ferro, deixou alguns trocados na mesa e partiu.

Espreguiçou-se mentalmente: "Perfis de consumo... e é apenas isto."

Partiu rumo a um desconhecido, um desconhecido que se ele não apetecia, tornava-se pela força dos fatos insuportávelmente óbvio.

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