sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Carnaval

Enrico e sua vida afetiva
Tornaram-se à força
Um maio de 68

Matemática do Diabo

E o antigo, chamado de velho nos corredores íntimos do não-políticamente correto, observava, e sabia pelo movimento de quadril, ou pela blusa rosa desajeitada, cujo cabelo quase molhado, que cobria parte da alça do soutien, que a ruiva compraria pão, iogurte e mel.

Era uma matemática dos diabos.

E tal fato se repetia, reproduzindo-se, seguindo uma vontade oculta não explicada que não fazia sensualidade naquele corpo antigo, mas que despertava no cotidiano do velho uma sensação contínua de deja vu, esboçada no fim de seus dias, onde a ruiva, tornada ponteiro, ou apenas areia escorrida na ampulheta do cotidiano, colocava-se exposta, sempre num bom dia ou numa conversa trivial na porta daquele mercado curto, curto de interações sociais.

E o pão, o iogurte, e às vezes o cogumelo shitaque, preso num copo de vidro, rendiam mais do que um bom dia, no qual o velho, recostado no único banco sincero daquele hectar, em frente ao mercadinho sem nome, procurava prolongar mais seus oitenta e dois anos bem vividos com a conversa casual e pontualíssima que lhe era costumaz.

E a ruiva, vítima corriqueira e agradável de um sorriso cuja experiência e serenidade já faziam parte das necessidades culinárias do cotidiano e da vida, fazia questão de o agraciar, menos do que a sua história realmente merecia.

E o velho, ou o antigo - digam os justos, agradecia gentilmente aquela que parecia sua filha emigrada para o Canadá, ou na verdade, que justamente se assemelhava, de alguma maneira particular que só o antigo se recordava, de sua querida e eterna amante: esta mulher, Lola, valente e ruiva, que fazia-o viver perante os apocalipses do cotidiano. Que o fazia chorar nas noites de Natal. Aquela memória viva, lacinante, que fez aquele velho sem vida naquele mercado sujo e desigual, lutar nas barricadas da Espanha, que o fez, chorar, quando teve de enterrar Lola Iturbe assassinada pelos franquistas em 1936, onde a terra camponesa e coletivizada que guardava aquele corpo matava também parte de si próprio.

E o taxista, aquele que não tinha nem uma experiência rica e devastadora de uma grande guerra que produzia monstros de carne e osso, ou ou a esperança de uma grande revolução, assistia as guerras da televisão como videogames, onde não existiam Lolas, nem pães, nem iogurtes, e que costumava apenas pensar banalidades que não emigravam nem para a Espanha, nem para o mercado do cotidiano, que se espatifavam e morriam estilhaçadas quando um passageiro resolvia viajar de táxi, encontrava-se largado. Com as mãos e pupilas cansadas, onde a ruiva, a ruiva tornada assim cotidiano, parecia apenas inalcançável e distante como um fundo que não se mexia e ele não adivinhava nem com o movimento da ruiva ou do velho, que seus dias estavam contados.

Os ponteiros passavam, matando o velho nos intervalos da ausência sincera da ruiva, e quando ela fazia-o viver, agradava alguma idéia de encadeamento do destino, perdida no sótão sórdido e oculto de alguém que enxergava a eternidade em outro ponto da cidade que não aquele.

E aí neste ponto exato, mas estúpido, onde as coisas não se encontravam se não por obra de um deus dado pelo nome de acaso, ou no caso atual, desta fabricação quase real das possibilidades, Vasilli encontrava toda a história como num aneurisma de um mundo que se fazia apenas causa-efeito; este encontro secreto, mas agora revelado ao leitor, se deu na noite do dia dezesseis de um mês quente de verão, talvez um fevereiro, mas decerto seria um quase-março, onde ao acender um cigarro, Vasilli, enxergou sem ver, aquele soutien rosa, sob os ombros corajosos daquela ruiva.

No encontro do mundo, pequeno pedaço de algo forçosamente unido, nutriam, o mesmo sentimento de perda, e desconheciam, que cada um, taxista, Vasilli, o antigo e a ruiva, constituíam-se num encontro revelado que desabrochava frente à uma única cor e onde todos fingiam, mas mesmo sem par, a necessidade fazia e impelia-os a se encontrar.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Depois e durante o carnaval: lembranças

Tudo me lembra ela. E ela nem sabe.

Se soubesse, eu me lembraria pouco, pois estaria tranquilo pela sua lembrança.

Conquanto o amor só traz inquietação, traz em si, cervejas, traz poetas sozinhos, traz assim, um pedaço de mundo completamente perdido, perdido dentro daquilo que não prestava e que sem pistas, deixava sem dúvidas aquilo que era parido, parido e mal esculpido assim; na dúvida.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Na boate

Dançavam e quando faziam, o mundo decidia ruir.

A pista de dança, fútil e silenciosa, assim tão temporária, envergonhava-se no puro silêncio de dois corpos. Dois corpos justos.

Os ruídos e a festa de ambos apagavam pessoas, tornadas meras paisagens desnecessárias, juntavam-se às luzes, luzes que como se fossem candelabros tímidos, celebravam caladas, assim, como num culto de amor próprio em que ambos decidiam-se sem um perdão ir até o final, forjavam um quase sempre curto, e completamente viral naquele balé de expectativas; de esperanças.

Ela, a ruiva, passava as mãos naquele cabelo liso, até oleoso, despretensioso e abusado, mas ele a olhava com um soslaio fingido, sincero, que respirava tão sensualmente; ela acariciava-o sem pressa sob o ritmo frenético do sábado, ele mordia os lóbulos de sua orelha, ela jogava a cabeça e o orgulho para trás, ele beijava todo o seu pescoço, ela pressionava seu ventre ao dele... E tudo era tão bom.

Tão bom.

Ela mordiscava-o com fome, e o obrigava a agir, a sair daquela toca, daquele culto desinteressado, à segurar seu cabelo curto esquecendo aquele niilismo emocional que era na verdade medo, e assim ela gritava no oculto: me pega porra, me suga com tesão, me fode agora com força!

Me puxa sem futuro, sem medo, e deixa essa dor se misturar ao prazer do teu corpo, ao teu cheiro, à tua fronte, ao teu gosto.

Deixa eu gritar um amor de instantes!

Na cama, o lençol apartado jazia ao lado da garrafa vazia, o corpo nu, encontrado entre as paisagens desnecessárias cultuava dois corpos calados.

No final tudo resolvia se encontrar.

A dor, o gozo, as palavras. Que vão remendando tudo, assim, tão abusadas.

O mundo, dizia depois do grito de minerva, era um grande amontoado de coisas, que não existia se pensássemos como um algo coerente e unido. Mas o mundo, e ressaltava após o terceiro gole de cerveja e com os dedos apontados para as nuvens que cobriam o planeta, o mundo, foi dividido, num espólio desigual entre pessoas. Cada um guardava um pedaço de mundo dentro de si; uns recebiam mais pedaços e que guardados sob segredos nem sempre solitários, acabavam por desfrutar mais do que deveriam desse acordo. Uns gastavam mais, outros menos.

Acabava por desfrutar de um instante que era o eterno, aquele instante abusado, explícito, necessário.

Enfatizavam o óbvio.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Enrico e Joana



Era na décima faixa de seu cd preferido que ficava e permanecia bêbado pois era a música que o tocava, e não o inverso.

Era no meio da semana que a casa e ele desorganizavam-se, juntos, com as meias, os medos, os sussuros sem dono e os vazios que insistiam em gritar dentro de si mesmo, reclamando presença.

Era no quarto, e no quarto trecho de conversa que desanimava ou lembrava de uma piada engraçadíssima que não compartilhava com ninguém - ia embora meio bêbado, meio feliz, meio deprimido, com cinco aspirinas no bolso.

Desperdiçava-se dentro do ônibus, com os trocados e as tristezas sendo entregues assim, sem culpa, e esparramadas pelo cotidiano, com sua pequena história de vida vendida à preço barato; o trocador, o motorista, e a mulher semi-nua do banco da terceira fila à esquerda: não se importavam.

A paisagem ia mudando, mas havia uma solução completamente radical: um afago, pois um afago verdadeiro, um de quinze minutos, resolveria tudo.

Resolveria completamente; mas afagos verdadeiros não se compram à metro... Afagos não se vendem à quilo; afagos não são como pombos que sempre retornam ao estado original(...) , afagos sinceros são bilhetes de loteria, moedas marcadas, poesias em livros rasgados...

Afagos verdadeiros, sinceros e honestos são como algo que resolvesse jamais pensar, algo que resolvesse apenas sentir, como árvores, e que definitivamente, por ser um afago sincero, não resolvesse nascer em árvores.

E ele sabia, sabia disto com uma dedicação semi-profissional, sabia, quando fazia a barba no espelho quebrado e cortava-se acidentalmente, e de tão só em um apartamento vazio, completamente vazio, costumava pensar o que ela, desconhecida e oculta, pensaria quando ele se cortasse.... Talvez diria algo ou reagiria, ou resolveria acariciar seus olhos sem alguma fé.

(...)

No canto da casa algo se comovia.

Era na terceira ilusão que resolvia caminhar, sem rumo. Como deus, que resolvesse observar sementes de girassol largadas num terreno pantanoso ou barrento, ela acreditava. E acreditava, a ponto de colocar falsas expectativas, que eram tão verdadeiras a ponto de ela se permitir acreditar naqueles filhos da puta em série.

Filhos da puta. E ela, que mesmo assim, aparentemente desgraçada, dava as boas vindas e convidava-os à perdição... mas quem perdia, e no fim do jogo, era sempre ela, sempre.

Possuía um mundo-homem que não concordava. Possuía um mundo macho, violento, viril e que nos finais de semana fingia empatia e estabilidade, com rosas e cartas de amor encomendadas.

Possuía-se sem se conhecer.

A maquiagem borrada, batom sujo no vidro, ela e a cinta-liga negra dormindo naquele calor infernal, com a cama assim, tão completa e vazia, cuja fé fingia um orgasmo sincero mas não romântico naquele amor de quinze minutos...

E ele, tão homem, que não se comovia e vendido à quilo pelo preço do mercado, ia embora no dia posterior, com o mundo todo sobre seus ombros, com a cinta-liga negra, com o amor de encomenda, com a terceira ilusão e com o que sobrou da expectativa dos afagos sinceros, e desaparecia, com ela na borda, emoldurando o prazer daquele filho da puta egocêntrico e narcísico.

Goza primeiro seu merda!

Ela, que cozinhava e cozinhava-se, e carregava no peito Eros e Thanatos, a vida, o prazer e a morte, na caixinha de música movida à corda, com a bailarina no topo com um imã mal fixado, jurava, jurava que aquela gravidez não era amor, não, não era, e sabia disso naquela noite mal dormida.

Quando parou no espelho para ajeitar os cílios, teve vontade de chorar, botou a culpa nos hormônios e parou, parou assim; completamente honesta.

(...)

Não se conheciam, essas duas almas gêmeas indômitas e indiferentes. Faltava destino, faltava um esbarrão no metrô.

Indiferentes, ele e ela precisavam de sorte para fazerem jus aos seus nomes e expectativas; precisavam de um pouco de destino e um ponto de apoio confortável para que os afagos sinceros pudessem alavancar o mundo.

Bastavam-se, mas precisavam se encontrar. Precisavam se encontrar, como sementes de girassol, sementes jogadas no mundo.


quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Hagiografia de Pecadores - Volume II

Celeste tinha um segredo que ninguém, mas ninguém sabia; até agora.

Entrava à esmo nos enormes prédios do centro da cidade, apesar de ter descoberto recentemente que o centro da cidade não é bem uma zona central, mas fica cada vez mais a leste, toda vez que se pretende chegar nele.

Sob a mágica dos prédios, mirava um andar em particular, consultórios, financeiras, sindicatos ou firmas de construção.

Bela Vista!, que a janela não via; passeava, sorria, fazia personagens, e como se não houvesse vida entre as portas, aquelas que nunca abriu, resolvia voltar. E começava tudo de novo, no próximo dia, até que descobrissem seu segredo, e ela tivesse que recomeçar um novo jogo que alguém ainda não tinha inventado.

Jean enxergava corações em coisas que não se assemelhavam aos corações. Papéis de bala largados que pareciam ter formatos de coração, pinturas que ele mesmo fez, pedras insensíveis e apaixonantes; lá dentro, da sala de aula, ele não se apaixonava por ninguém, apesar de fazer repetidamente numerosos origamis de corações nos dias mais quentes que voavam quando alguém se dispunha a perceber.

Matheus e seu dom enxergavam a beleza das medianas. Olhava aquela de trança, olhos negros, largada.

A que não tinha tanta graça, nem tranças, guardada no canto do ônibus, desajeitada. Aquela outra, mais adiante, a de cabelos loiros, que nem olhos bonitos, nem ônibus possuía para se esconder, a que movia as mãos sem alvo e motivo; que disfarçava o jeito, de jeito a não revelar a ninguém o alguém especial que tinha sido naquele curto momento no universo de Jean, e depois deixado passar, se escondia novamente, assim, com as mãos completamente desajeitadas e nuas...

Numa placa impositiva e infeliz: - Atenção, máquinas trabalhando, quando Santiago mudou-a para o escritório em que trabalhava, ninguém mais riu, além dele próprio.

Valadares era uma pessoa comum, era o que todos diziam e murmuravam para si próprios.

Quando o táxi despencou no abismo sem motivo aparente, os vizinhos reclamaram, mas o que se passava, era que um escritor indignado, teve insônia e só pode combater aquilo com um taxista morto num conto publicado na página dezesseis de um livro de cabeceira que afinal, ninguém nunca lia.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Experimentos

Como algo que decidisse, entre um beijo no canto da boca que só afagava o outro e parte de uma viagem de ônibus que pudesse enfim, fazer sentido.

Era sim, era assim. Silêncio Soto Maior! Silêncio!

Acomodado em seu inverno; as orações cotidianas: dormir por sobre a colcha, tomar café sem ninguém ver, sentir sem ser ajudado.

Restava-lhe ser.

Silêncio Soto Maior.




Diálogo de Iguais

É como se o verniz, que há tanto tempo, que usei para me proteger do mundo estivesse saindo aos poucos e que somente nesse momento, pudesse me ver e rever o que fiz.

E desprotegido, perdesse todo dia, um pedaço de mim, cujo revés, me prostrasse entre uma cama de motel vazia ou um café no centro da cidade com pouco açúcar.

Feito em parceria com Rosa

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Das Piores Dores

As piores dores eram as que pairavam por sobre o ar, assim tão ingênuas e covardes, pois nem coragem possuíam para se concretizarem em algo concreto. Nem nos tickets de metrô, nem nas dores que falavam pelos rancores.

Não possuía nem tinha em mãos aquilo que pudesse ser suficientemente apontado numa situação objetiva que despertando ódio ou choro, apenas falasse por si só, assim sem intermediários; e que ao invés de se esconder por detrás de um abismo oculto e covarde dentro de si mesmo resolveria mover o corpo e a alma em direção à uma desistência legítima e que provocasse algum afeto guardado mas verdadeiro.

Mais nem aí, nem na segunda ou terceira situação limítrofe contava com as lágrimas que limpavam o terreno e os olhos, sentimentos, para um novo cultivo; atingir as situações limítrofes não eram tão difíceis, mas chorar por elas tornavam-se cada vez, demasiado raras e ocasionais.

O limítrofe avançava cada vez mais a oeste, e perdido no horizonte que ele esquecia dormindo às quatro da manhã, cujas lágrimas eram diamantes cada vez mais raros, e a dor transformava-se em uma visita banalizada, costumava dizer que algo precisava irromper.

A possessão tomou conta dos sonhos, e em nenhum momento Soto Maior logrou uma ajuda que não se esvaziasse em si mesmo.

Soto Maior, cujas mãos não encontravam mais as lágrimas nem os olhos, cujo cultivo de si próprio, provocou desistências, cortou-a, pelas beiradas, e depois de acabado o intento, queimou-a com um isqueiro, parte por parte...

E assim aquela carta esfarelou-se consigo próprio.

(...)

Amanhã enfrenta o mundo; amanhã, secará lágrimas inexistentes. Amanhã ele buscará mais pontos limítrofes. Estes não bastavam.

E era disto que tinha realmente, medo. Medo.