Quando a sua emoção transbordou, junto com o café, com a casa, que se desmanchava quando os tijolos derretiam toda vez que você chorava, precisávamos comprar casas, emoções e tijolos novos. E algo irrompia. Sem dó.
Aquele abismo que apelidamos com o mesmo nome de um cachorro que você teve nos idos de 1977, não se acostumava comigo, e toda vez que eu levava o lixo para fora, ou dormia dentro do ônibus de ressaca, ele resolvia me engolir, e além da ressaca, eu perdia duas ou três semanas, fugindo das trevas, pois o estômago dele era grande. E além de você ter de me encontrar, eu perdia meu emprego, e a situação piorava, por que não haviam vagas de caçadores de abismos abertas por aí.
O seu cabelo era ruivo, mas você sempre insistia nesse seu solipsismo irritante, que eu, eu possuía um daltonismo particular que não chamariam mais de daltonismo em idos de 2072, pois as coisas estavam invertidas, que eu não enxergava a cor negra, nem a amarela, que essas cores eram vistas como ruivo. Talvez fosse verdade. Talvez o mundo estivesse errado.
E e que a vida para mim, era algo meio tenso, devido às cores erradas que a minha retina escolhia.
Eu enxergava em branco, ruivo e negro.
Quando eu me despedi, eu na verdade desejava sumir, como fazia, toda vez que fingia ser uma paisagem, e isto era particularmente fácil, ser paisagem.
E de quando eu conseguia me esgueirar, me esquivar para dentro daquela biblioteca que parecia meu próprio mundo, um mundo decerto mais organizado, no qual me escondia, olhando para a janela, chorando sem ninguém ver, por entre aqueles tijolos, aquele silêncio, onde um ou outro caminhava, onde as estantes e entranhas de ferro, o cheiro de mofo, os ventiladores que não falavam, acabavam me seduzindo, e eu fingia buscar um livro, mas eu buscava era o nada.
A bibliografia era emocional; partida ao meio, escandalosa, afetiva, antiga.
Eu buscava a mim mesmo, eu me buscava ali, andando de um lado para outro sem propósito, sem o propósito de gente que busca as bibliotecas; enfileirado entre aqueles livros, eu sonhava em me encontrar na terceira estante, com algum código de barra de bibliotecas, preso na capa, na alma, do livro, no livro, onde eu pudesse definitivamente ler aquele meu manual de instruções, construído pelo deus que eu negava, e pura deliciosa abstração.
E eu me acharia. Eu me acharia, mas na verdade eu me achava quando conseguia não ser observado, quando a solidão dominava o ambiente e eu não ligava nem para os livros, estantes ou homens-estantes que me olhavam, era quando assim, daquela janela suja, que algo não importava, e eu começava verdadeiramente a me tornar uma flecha sem alvo.
Infinitos. E aí, parte dos livros falavam, por milissegundos, e se calavam, e a biblioteca citava aforismas toda vez que eu ia embora, mas ninguém via além de você.
Eu dormia.
Eu era assim ruiva.
Completamente sozinho.
Como um livro mofado, que mesmo na estante, morto entre às traças, foi pego em cinco de março de mil novecentos e setenta e três.
Mesmo sem a bibliotecária, cujo arrependimento falava mais do que todos aqueles nove mil títulos, na noite em que ela escolheu o rosto mais fácil, mesmo assim, o livro partiu, partiu para não voltar.
Partiu no quarto segundo do paralelepípedo passado.
Aquele que já se foi.
Um comentário:
Muito bom!
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